31.10.03


Insônia - Parte Dez
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Descemos a escadaria e na portaria encontramos um homem, mais velho, cabelos grisalhos, usando roupa social bastante formal. E muito calado. Apenas cumprimentou-me com um 'bem vindo' e não dirigiu uma palavra a mim durante o trajeto, que foi curto. Ele apenas falava rapidamente em uma espécie de rádio, disparando ordens como 'Mande o grupo 4 inserir uma morte horrorosa, talvez da mãe dela. Isso vai mantê-la livre por uns 10 dias'.

Para evitar ficar mais perdido do que estava, eu tentei acompanhar o trajeto e percebi que o centro da cidade estava ainda pior do que em 1999. As ruas e calçadões estavam muito mais cheias de lixo e pessoas dormindo sob beirais e marquises. Prostitutas e bêbados disputavam lugar nos faróis das avenidas, onde nenhum carro atrevia-se a parar, enquanto policiais e capangas matavam ladrões e mendigos nos becos e ruas estreitas, sem dar atenção a quem via ou deixava de ver os acontecimentos. Era ainda mais perturbador ver aquilo sabendo que outra ameaça pairava sobre todos nós: uma invasão de criaturas disformes que nos alcançavam em nossos sonhos e corrompiam nossas mentes, tomando controle de nossos corpos e vontades.

Paramos e entramos em um prédio, que ficava num lugar que eu reconhecia como sendo a Avenida Paulista. Passamos por um porteiro que parecia saber onde estávamos indo e entramos num elevador, desembarcando apenas no 17º andar. Emerson seguia na frente, enquanto Fred, escutando algo alto e estridente no walkman, o seguia e Simone ia ao meu lado, por último. Entramos numa sala bastante aconchegante e Simone me indicou um dos sofás. Um outro homem, também cheio de olheiras, já estava lá, nos aguardando.

"Olá, Alexandre. Eu sou o Dr. Péricles e eu vou ser o Condutor de vocês hoje."

Percebi que Fred e Simone também haviam sentado nas poltronas e estavam recostados e começando a relaxar. "E onde você vai me conduzir?", eu respondi, ainda desconfiado.

"Para dentro da mente de outra pessoa. Através de um processo psico-hipnótico de nível mental elevado, eu transportarei a consciência de vocês três para dentro da mente de outra pessoa, que está dormindo nesse momento, e que já tenha alcançado um nível mental específico que permita que ela sonhe".

Eu acho que ainda estava sob efeito do estabilizador. "Que seja. Estou começando a achar que enlouqueci e isso é só mais um devaneio".

"Apenas tente relaxar. E vou dizer algumas palavras enquanto você relaxa no sofá."

Não posso dizer que ouvi sequer uma palavra, mas senti, em meio a escuridão de meu relaxamento, que o sofá tornara-se pastoso, como eu já sentira antes. Comecei a afundar e tentei segurar-me em algo, ou abrir os olhos e gritar para o doutor que algo saira errado, mas foi em vão. Num segundo eu havia sido engolido pela maciez do sofá e todos os meus sentidos começaram a se misturar: eu ouvia uma leve claridade que surgia, e cheirava um som distante e perturbador de disparos de balas. Um odor fétido atingiu minha língua e enfim eu vi o toque de uma mão no meu ombro. Despertei.

E como num sonho, de repente eu estava em outro lugar. Agora eu estava de pé, num gramado verde, sob um dia azul e ensolarado, e ao meu lado estavam meus novos amigos, Frederico e Simone.

"Sente isso, mano!", disse Fred. "Não é demais? Estamos num sonho. Você percebe como tudo parece prestes a flutuar? E a brisa? Existe brisa num sonho!"

"Não é brisa, Fred", Simone respondeu lacônica. "Tecnicamente é a respiração do dono do sonho influenciando seu pensamento".

"Sonho? Isso é um sonho?", eu disse, desnorteado pela mistura dos sentidos, que agora era uma lembrança distante e muito menos viva do que a paisagem a minha frente. Lá adiante, no gramado, havia uma roda de crianças brincando e a música que cantarolavam chegava aos meus ouvidos como calmas ondulações na água, produzidas pela queda de uma pétala de rosa. "Como é possível?"

Fred abriu os braços. "Bem-vindo ao Projeto Insônia, meu velho. Isso é o que fazemos pra salvar o mundo".

Simone deu um passo em minha direção e tocou meu braço. Sensação boa. E percebi que o rosto dela já não tinha olheiras, mostrando apenas profundos e bonitos olhos verdes. "Estamos no sonho de uma pessoa, Alê. Não sabemos de qual pessoa. É um processo praticamente aleatório. Sei que é difícil compreender, mas você tinha de ver primeiro para conseguir aceitar".

Eu não queria aceitar nada. Aquilo estava fincando um pouco demais pra mim. "Simone, por que?"

"Como assim?"

"Por que eu? Por que eu fui escolhido pelo projeto para fazer parte dessa insanidade e saber de tantas coisas que me perturbam?"

"Infelizmente eu não sei, Alexandre. Ninguém sabe. Algumas pessoas simplesmente despertam um dia. Algumas pessoas, como eu, tem um pesadelo tão terrível que terminam por despertar. Outras, como você, encontram seu Nêmesis e conseguem destruí-lo."

"Meu Nêmesis?"

"Sim, um Dreamie que tentou tomar controle de você, mas você conseguiu dominá-lo e destruí-lo. E então você despertou para esta outra realidade."

Eu simplesmente baixei a cabeça por um momento e desejei estar morto. Ou ter sido dominado por uma dessas criaturas e nunca mais ter controle sobre mim e minha mente. Eu comecei a ouvir a velha gargalhando, como que caçoando da minha vitória, que tinha gosto e cheiro de derrota.

"Você vai se acostumar com os sonhos dos outros, e vai aprender a viver como nós vivemos".

"Sonhos, não.", gritou Fred, fazendo-me olhar em sua direção, simplesmente para vê-lo empunhar uma metralhadora, que surgira do nada, como todas as coisas num sonho. "Pesadelos, Simone. Pesadelos!!!".

E correndo na direção das crianças, acionou a arma, que gritou e retumbou e cuspiu suas balas de sonho (ou pesadelo), que voaram pelo gramado e foram atingí-las. O sangue espalhou-se pelo azul e pelo verde e num segundo, tudo que eu via eram crianças sendo estraçalhadas por balas e gritando estridentemente, pedindo por socorro, enquanto Fred as alvejava e chutava os corpos que jaziam inertes, no chão.

Ao meu lado, Simone, a garota do metrô, sorria. Não. Ela ria, ela gargalhava.

See Ya