22.4.05

In Nomine Dei

Esse texto nasceu como um PS do enorme post anterior, mas acabou ganhando personalidade própria. O assunto, como o título entrega, é o novo Papa.

Confesso que tive a ilusão de que, mesmo tratando-se da Igreja Católica, o fato de estarmos em pleno 2005 permitiria que uma leve brisa de avanço soprasse pela Capela Sistina. Ledo engano, vã ilusão...

O Cardeal Joseph Ratzinger, agora Papa Bento XVI, foi durante o papado anterior ninguém mais, ninguém menos que o guardião da Congregação para a Doutrina da Fé. Ou o novo nome do Tribunal da Santa [?] Inquisição -- aquele que queimava bruxas e congêneres.

Outro ponto "edificante" na biografia do novo Sumo Pontífice: ele foi pessoalmente responsável pelo desmanche da Teologia da Libertação (TL), pois declaradamente odeia o marxismo -- que anacronismo -- e a TL tem um "cheiro de marxismo", segundo o próprio. Aliás, foi ele próprio que submeteu o Leonardo Boff, um dos principais ideólogos da TL, a toda a humilhação por que ele (Boff) passou quando foi punido pelo Vaticano na década de 80.

E, para dar um temperinho extra, Raztinger é o cara que acha que mulheres são inferiores (desconfio que, por ele, elas ainda seriam proibidas de se aproximar do altar). Também acha que uniões homossexuais são "imorais, artificiais e nocivas". Que eutanásia, aborto, divórcio e clonagem são pecados gravíssimos. Que shows de rock "podem assumir características de culto ou até de adoração, contrários ao cristianismo". Não é à toa que ele já está sendo chamado de Adolf I :-)

Tá, aí você me pergunta: e que diferença isso faz na minha vida? Quando o Bush Júnior quer fazer guerra, por exemplo, o Papa não impede coisa alguma. Tudo corre ao largo da igreja, não é? Pois é, eu até gostaria de acreditar nisso, mas tenho a triste impressão que não é bem assim.

Sabe por que? Porque vai ter gente aí do seu lado, aqui do meu, que vai achar que essas opiniões da mais alta autoridade Católica legitimam seu preconceito, sua limitação, sua pequenez. E isso culmina com o assassinato de um cabeleireiro a porradas só porque ele estava passeando de mãos dadas com outro homem na Praça da República. Culmina com mulheres sendo espancadas em casa sistematicamente, sem que haja alguém para defendê-las dos maridos/donos. Culmina com explosão populacional e aumento da miséria; com gente vivendo como vegetal em UTIs de hospitais; com mulheres divorciadas tratadas como párias em cidades pequenas nos grotões deste país; com religiosos de credos diferentes fazendo arremedos de guerra santa; e por aí vai.

Enfim, o único consolo que vejo é que o cara já tem 78 anos, então não deve durar muito. Mas minha avó Áurea -- que Deus a tenha -- sempre dizia que "vaso ruim não quebra". Alguns conhecedores de Nostradamus dizem que esse vai ser o último Papa, sei lá.

Só uma última colocação, para evitar maiores confusões: sou católico e desejo/espero que eu esteja redondamente enganado.

PS: Desculpe se os textos de hoje não estão exatamente animadores. Digamos que a minha porção Polyanna está encolhida em algum canto, apavorada.
Sobre como isso tem a ver com aquilo

Sábado passado, no fim da tarde, indo ver minha afilhada Giulia, peguei trânsito congestionado no caminho para a Marginal do Tietê. Não demorou muito para eu entender a razão: as 57.000 pessoas que foram ao Skol Beats.

Então, na velocidade de "lesma lerda" em que eu estava indo, fiquei olhando os outdoors da Av. Tiradentes. Um deles me chamou a atenção por tratar do plebiscito sobre a redução da maioridade penal.

Os que defendem essa idéia querem reduzir a imputabilidade de 18 para 16 anos, argumentando que os adolescentes infratores devem ir para a cadeia comum. Ainda mais agora, com as recentes e constantes rebeliões na FEBEM.

Ora, não é necessário ser exatamente um gênio para entender que não há fábrica de bandidos maior e mais eficaz que o sistema prisional brasileiro e a própria Fundação Estadual do Bem-Estar (sic) do Menor. Talvez o Congresso Nacional, mas aí já é outra categoria.

Na minha humilde e nada especializada opinião, o que esses obtusos não vêem é que o problema está na outra ponta, aquela da desigualdade social que ganhou para o Brasil a alcunha de Belíndia -- uma pequena e rica Bélgica cercada por uma imensa e pobre Índia, tudo junto nesse "país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza".

Será que não dá para perceber que reduzir a maioridade penal não vai resolver nada? O que é pior, que tende a ficar mais sério? E depois? O que fazer quando o problema aumentar? Reduzi-la ainda mais, até o ponto em que ela vai ser determinada pela idade em que as crianças conseguem empunhar uma arma? Oito anos, talvez? Ou quem sabe os fabricantes descubram materiais mais leves para que os ainda mais novos consigam usá-las também?

Bom, agora vamos voltar ao tal do Skol Beats. Foram 57.000 pessoas pagando de R$ 35,00 a R$ 90,00 para estar lá pulando a noite toda ao som tocado por DJs famosos em seus meios.

(Só uma observaçãozinha: qual é essa de idolatrar DJs como se fossem músicos virtuosos? Porra, o que os caras fazem é misturar músicas! Ou "mixar", para ficar mais sofisticado. É legal e tal, mas é só isso, não é? Ou então eu é que sou ignorante, sinto muito.)

Nas preliminares da megabalada, foram apreendidas dezenas de milhares de pastilhas de ecstasy. Eu mesmo vi no jornal a apreensão de 41.000 comprimidos -- todos em forma de coraçãozinho, que fofo! Sem contar que um subgerente do Banco Real ainda guardou não sei quantos no cofre do banco em que trabalhava. Até que faz sentido...

Já que você teve paciência para ler até este ponto, vamos montar a equação? É até simples: os filhinhos da (tosca) elite deste país enchem o rabo da AmBev com o dinheiro dos pais deles. E, para turbinar as sensações, gastam mais dessa mesma grana com o ecstasy que os faz amar tudo e todo mundo. Só que alguém tem que fazer o trabalho sujo. E o trabalho sujo muitas vezes é feito justamente pelos adolescentes que essa mesma elite quer colocar atrás das grades.

Deu para sacar? Vamos brincar de fazer uma historinha: Doutor Gastão tem um filho, o Gastão Júnior, que tem 19 anos, é muito "popular" e vive de festa em festa, motivo de mal-disfarçado orgulho do Dr. Gastão, temperado com uma preocupação de butique com o menino nesta cidade tão violenta... Júnior, por sua vez, é perito em esbanjar a grana do Dr. Gastão com uma lista de prazeres -- inclusive o ecstasy, que ele compra do Marcos, colega de faculdade (paga) e subgerente do Banco Real. O Marcos compra a droga do seu João Santos, cujo filho, Joãozinho, de 17 anos, vai à boca toda terça-feira buscar a entrega. E é o Joãozinho que o Dr. Gastão quer mandar para a cadeia, afinal a cidade está muito violenta para o Júnior.

(Só um adendo: é claro que isso é uma generalização. E, como toda generalização, é injusta. Sei disso e assumo.)

Enquanto isso a Giulia, cada dia minha linda, sorri para nós seu sorriso sem dentes e tenta comer a orelha do Tigrão de borracha que ela ganhou. É, Gigi, às vezes eu me pergunto se devemos celebrar ou lastimar sua vinda para este mundo...

1.4.05

Jantar 265

Parou na beira do abismo e o contemplou. A iluminação avermelhada o incomodava um pouco. Não que não gostasse, mas achava que a ocasião não pedia tanto.

"Qur'an!!", gritou. "Apague o fogo dessas primeiras 6 piras. Isso aqui está claro demais".

Qur'an saiu de trás das pedras, rastejando. O Sibilo de sua língua era inconfundivelmente agudo. Não fosse o som ao fundo - pessoas berrando em agonia - seria terrível demais ouví-lo falar.

"Mas, Mestre, e os gritos? Se eu apagar as piras eles não vão queimar e sofrer".

O outro ponderou por alguns segundos. "Envie alguns dos seus escravos pra lá então e mande que eles torturem os que estiverem nas piras apagadas. Mande-os fazer cortes com papel embaixo das unhas dos condenados. Eles vão gostar". Por um segundo até mesmo esqueceu do compromisso que tinha e ficou imaginando a dor e a agonia. Bateu o casco contra a rocha suada, em sinal de satisfação. Lambeu os beiços deformados com sua língua bipartida.

"Sim, senhor. Algo mais, senhor?"

"Sabe, estou um pouco apreensivo, admito. Já faz tempo que não recebo visitas importantes." Olhou por sobre os ombros e viu a mesa disposta sob a sombra de um carvalho apodrecido. Sobre a mesa estavam os "talheres" de tortura - tesouras, foices, facas, morsas, martelos, correntes, discos do Latino, pintos de borracha, máscaras de couro - e a singela placa com o número 265.

"Qur'an, acho melhor trazer os viados pra cá também. Prometi a eles que poderiam me ajudar."

"O senhor vai cumprir uma promessa?". Qur'an parecia desconcertado.

Ele sorriu. "Não, não. Vou me divertir."

Qur'an deu de ombros. "Como desejar, Mestre. O senhor não trouxe a mordaça?"

"Não é necessário dessa vez. O italianos é que eram falastrões e auto-confiantes demais. O polaco vai contribuir. Aprendeu a ficar quietinho nas mãos dos soldados do Adolf. Aliás, avise-o também. Talvez ele queira vê-lo". Pensou por um momento. "Ainda melhor: traga os judeus. Vamos ver se aqui ele também sabe fingir que teve dó das vítimas do holocausto."

Olhando ao redor, Qur'an começou a achar que o lugar escolhido por seu Mestre parecia pequeno.

"Senhor, tem certeza sobre os judeus? Eles são muitos e meio agitados", riu internamente. "É dificil não ficar agitado depois de passar tanto tempo em câmaras de gás", riu baixinho. "E não se esqueça que ainda temos os bebês."

"Ah, os bebês!! Como poderia me esquecer deles. Pendure-os pelos pés, aqui em cima", apontou. "Quero que meu convidado possa vê-los e saiba que os mandou pra cá. Velho imbecil! Por conta de sua teimosia isso aqui agora parece uma maternidade. Milhares de abortadinhos pequenos e disformes todos os dias. Vá dormir com este barulho todo!"

"Não precisa ficar bravo, Mestre. Tudo vai ficar bem. Não se preocupe. Também já arrumei a cele dele, próxima das outras. E só não entendi uma coisa: se este é o número 265, porque só temos aqui 132 celas até agora?"

O Mestre respirou fundo o enxofre e procurou se acalmar. "Qur'an, seu idiota. Eu e Ele dividimos os Papas. Eu fico com os ímpares, e Ele, com os pares."

"Muito estranho Ele escolher metade pra sofrer aqui e a outra metade pra ganhar o reino dos céus".

O outro riu abertamente, uma gargalhada que se espalhou pelos abismos e piras e fossas de enxofre borbulhante. "Ganhar o reino dos céus? Nós dividimos mas eu os torturo aqui, e Ele os tortura Lá. Eu os torturo porque é divertido, mas também porque eles fingem tomar atitudes divinas e tomam atitudes humanas."

"E Ele?"

"Por serem humanos fingindo serem Deuses!!"

"Então eles não têm saída?"

"Usar as sandálias de Pedro é trilhar o caminho da tortura e do sofrimento, seja de qual lado for. Hehehehehehehe. Ahhhhhh se o Concílio aceitasse um voto meu! Adoraria ver o Trujillo calçando as Santas Sandálias. Mas nem tudo é perfeito."

Vindo de trás de uma pilha de corpos incinerados, outro Servo se aproximou. "Mestre, Mestre, ele vem vindo", abriu um largo sorriso de dentes pontiagudos e serrilhados. "João Paulo II morreu!"

E Satanás sorriu satisfeito. "Rápido, Qur'an, vá fazer o que mandei. E você. Mande um recado pros russos. Diga que ganhei a aposta: matei-o primeiro".

See Ya
Mesmas palavras

Um (bom) escritor ou poeta deve admitir quando perdeu. Quando sonhou a vida inteira com uma idéia que na mente de outro foi nascer e em telas alheias foi surgir. Não é vergonha admitir, vez por outra, que as palavras tão desejadas por mim foram imortalizadas na escrita de outro. Enfim, tem vezes que nada do que você poderia dizer é tão bem dito (e bendito) quanto na boca alheia. Com vocês, Nana Caymmi.

[UPDATE] Na verdade esta música é de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos.

Resposta ao tempo

Batidas na porta da frente - é o Tempo.
Eu bebo um pouquinho pra ter argumento.
Mas fico sem jeito, calado e Ele ri.
Ele zomba do quanto eu chorei
porque sabe passar e eu não sei.

Num dia azul de verão, eu sinto o vento.
Há folhas no meu coração, é o Tempo.
Recordo um amor que perdi e Ele ri.
Diz que somos iguais, se eu notei
pois não sabe ficar e eu também não sei.

Ele gira em volta de mim,
sussurra que afasta os caminhos,
que amores terminam no escuro, sozinhos.

Eu respondo que Ele aprisiona e eu liberto.
Que Ele adormece as paixões e eu desperto.

E o Tempo se rói com inveja de mim,
me vigia querendo aprender
como eu morro de amor pra tentar reviver.

No fundo é uma eterna criança,
que não soube amadurecer.
Eu posso e Ele não vai poder me esquecer.


Eu perdi. Todos ganhamos.

See Ya