27.4.04

Olhos de Mosca

Estranho que agora eu só possa contar essa história pra você. Sempre achei que isso daria uma história para um bom livro. Guardei essa história na minha bagunçada memória, esperando um dia poder ver meu nome abaixo do nome que dei a ela, na capa de um livro. E agora somente você pode conhecê-la, embora eu saiba que você já a conhece até mesmo melhor do que eu, que a inventei. Porém, vou contá-la assim mesmo.

Como em muitas daquelas noites, eu me encontrava sentado junto a uma escrivaninha mal acomodada, meio apertada, abarrotada de livros, papéis, anotações, gavetas repletas de mais papel, outros livros, elásticos, canetas, borrachas, lápis e até de algumas revistas que minha idade, na época, tornava ilícitas, conseguidas a muito custo numa banca onde o atendente era um velhinho meio cego, e que mal enxergava o que eu estava comprando.

E mesmo sendo uma noite igual a tantas, foi diferente de muitas outras, pois nesse dia, ela chegou e pousou sobre a mesa, e ficou me observando enquanto eu sofria para concluir uma lição de casa de português, ou Língua Portuguesa, como minha professora diria. Soube que a carrasca morreu de câncer no cérebro. Lembro de ter visto uma foto dela num álbum de formatura, anos depois, mas o álbum tinha uma pequena e estranha mancha, exatamente sobre a testa de professora. Não consegui lembrar do rosto dela completamente.

Professoras mortas à parte, eu percebi que aquela mosca havia pousado na mesa e ficara me observando por mais de 30 minutos. Ela lavou as asas, as patas anteriores e posteriores. Lubrificou as patas e seu aparelho bucal. Coçou seu abdomén bojudo e esfregou os olhos. Fitou-me diversas vezes, como que tímida, mas parecia confiar em mim e saber que eu não iria esmagá-la entre duas páginas de um livro ou sequer espantá-la de seu local de saneamento. Ela estava certa, eu não iria. Termimou seu banho, ensaiou um olhar direto, mas desviou seus milhares de olhos quando eu a encarei. Deu uma última chacoalhada e vôou.

Voltou na noite seguinte.

Algumas pessoas dizem que moscas vivem apenas 24 horas em sua fase adulta. Talvez não fosse a mesma mosca. Talvez uma irmã, ou filha. Entretanto ela pousou na mesa para um delicioso banho e lavou-se na mesma ordeira e precisa sequência. Nessa noite eu comia um pedaço de pão doce, e deixei cair, de propósito, uma pequena lasca perto dela. Como que entendendo minha intenção, a visitante alada não partiu, mas também não provou da iguaria oferecida por mim. Terminou seu banho e se foi, dando um rasante sobre o livro de geografia.

Na próxima noite eu fui para o quarto fazer minha lição um pouco mais tarde do que de costume. Acendi a luz quente e amarelada e a vi. Estava novamente sobre a escrivaninha, mas dessa vez deleitando-se com a lasca de pão doce que ficara sobre a mesa desde a noite anterior. Aproximei-me e ela não se incomodou. Aproveitei o ativo e dedicado momento de sua alimentação, para pegar uma lupa que estava em uma das gavetas e observá-la mais atentamente.

Sua cabeça era um amontoado de minúsculos olhos vermelhos. Ela podia me ver fazendo aquilo, certamente, mas preferiu se deixar obervar. Entre nós já não havia quase tensão, e também percebi que ela gostava de ser olhada, dada a forma como levantava e exibia suas brilhantes asas para mim, deixando a mostra seu grande abdomen amarelo de aspecto purulento. Abaixo de seus olhos vi sua boca, ou melhor, seu aparelho bucal. Através dele ela estrategicamente regurgitava parte de sua saliva, parte de outros sucos digestivos sobre a lasca de pão que, aos poucos, se tornava uma massa branca e disforme, sendo corroída pelo humor ácido saído de seu predador. Enfim, sem a menor cerimônia, ela começou a lamber o monte de vômito e pão que havia feito. Lambia com tal avidez e precisão que parecia mesmo se deliciar. Suas asas tremiam de excitação e seus milhares de olhos brilhavam e lampejavam sob a luz do meu quarto. Por alguns segundos eu mesmo tive vontade de provar da especiaria que estava sendo externamente digerida sobre minha escrivaninha. Senti-me estranho com tal desejo repentino, e o repeli, mais por respeito a minha recém adquirida amiga do que por nojo, propriamente dito.

A refeição foi breve, e depois daquilo ainda nos observamos por alguns minutos. Estiquei meu dedo até próximo dela. Eu pensava se ela estaria entendendo minha mensagem, se estaria ouvindo meus pensamentos que diziam para ela se aproximar. Estávamos absortos naquele momento estranhamente íntimo. Mesmo sem a lupa eu podia vê-la me olhando nos olhos. A imensidão vermelho escura de milhares de olhares me fitando foi tomando conta de mim, e eu apenas queria que ela se aproximasse. Ela não era maior que uma de minhas unhas, mas mesmo assim surpreendeu-me quando deu um passo - na verdade, um salto - em minha direção. Repentinamente eu recolhi minha mão num movimento brusco. Assutei-a, e ela saiu voando. Cruzou a frente do meu rosto e tornou-se uma silhueta diante da luz da lua, antes de deixar meu quarto.

Naquela noite sonhei que centenas de moscas andavam sobre meu corpo, como que tentando me conhecer melhor, me ver melhor em seus olhos e me sentir melhor sob suas patas. O mais estranho é que foi um sonho bom.

##### FIM DA PRIMEIRA PARTE #####

23.4.04

Doença da realidade

Talvez eu esteja doente. Ou esteja apenas lutando contra a doença que a todos afeta, e que, no final, vai acabar com minhas forças e rir, satisfeita, sobre minha carcaça inerte e sobre meus olhos inquietos como um controle remoto que zapeia através de cenas da minha própria vida.

Talvez eu esteja doente. Ou não saiba mais como e pra onde mudar pra conseguir um pouco de satisfação, nem que seja uma outra mania, uma outra motivação infantil e passageira, como todas as outras da minha vida.

Talvez eu esteja doente. Ou não tenha crescido suficiente para enfrentar o fato de que sou um adulto agora, com doenças e ilusões de adulto, embora ainda tenha a sinceridade e a imaginação dos primeiros anos da minha vida.

Talvez eu esteja doente. Ou reclamar, praguejar e desistir seja mais fácil do que erguer a cabeça, enxotar os pensamentos negros do porão e tentar uma vez mais seguir adiante e tocar minha vida.

Talvez eu esteja doente. Tomara que eu esteja. Se isso não for uma doença, eu tenho mais medo agora do que já tive em toda minha vida.

See ya

22.4.04

Interrupção no descanso

Ele voltou. My own personal Jesus Christ.



Quando Isso Virar um Blog eu vou entender o que se passa na cabeça desse figura.

See Ya

PS: meu recesso deve continuar, por enquanto. As coisas pioraram. Estão melhorando. Na velocidade de uma lesma com preguiça. Mas estão melhorando. Não me acorde de meu sono de beleza e paciência.

12.4.04

Verbo "Sair do Ar"

Eu escrevia
Tu comentava
Ele persistia
Nós dançamos
Vós calais
Eles caíram

See Ya

8.4.04

Cárcere

Repentinamente senti vontade de chorar. Nunca havia acontecido isso comigo. Eu já chorara antes, claro, mas nunca dessa forma inesperada. As lágrimas mancharam minhas roupas de vermelho. Olhei o céu um momento e me dei conta de que não o olhava há quase 70 anos. Tinha um medo instintivo de que um grande, amarelo e borbulhante sol estaria me aguardando logo acima de minha cabeça, pronto para me devorar e cuspir cinzas.

Deixei que as lágrimas corressem. Uma para cada ente querido que eu havia matado, ou deixado morrer e logo toda a cidade estaria rubra. Muitas lembranças e memórias deixadas para trás, pessoas e situações que haviam deixado muita saudade.

Apenas uma vez, anos e anos atrás, um intrépido e insensato rapaz havia conseguido cravar uma lança de carvalho em mim. Hoje ele está morto, mas a dor do golpe ainda permanece pulsante em meu peito. Contudo, a penetrante dor da madeira rasgando e agarrando-se ao meu tórax é apenas um lampejo de luz quando comparada à claridade incondicional que é a dor deixada por estas pessoas do passado e lembranças que remetem a elas.

As últimas palavras de uma garota cega. O último beijo de alguém carente e a recusa a um convite importante. A traição trazida pelas primeiras e imaturas noites. A noite de natal em que fui mais feliz do que em todas as outras. Um embate que mudou para sempre os rumos das coisas. A ignorância capaz de destruir uma amizade mais velha que o mundo.

Se pudéssemos ver os resultados de nossas ações antes de tomá-las! Ah, maldito tempo que escolheu o sentido errado para caminhar. Malditas horas que não se permitem serem menores que suas antecessoras. Mesquinhas e burras horas. Maldito tempo, que me fará lembrar de cada uma dessas lágrimas de sangue até o fim de minhas noites.

Quando o Primeiro foi amaldiçoado, o Pai soube elaborar, em toda sua perfeição, a mácula de seu filho maldito. Não concedeu que pudéssemos perecer pelo remorso ou arrependimento. E se hoje eu vertesse todo meu arrependimento e remorso em lágrimas, uma mancha vermelha poderia ser vista da Lua amarela e acusadora que banha meus olhos vermelhos. Quero voltar e desfazer certos nós que ainda apertam meu pescoço, embora não me sufoquem de forma derradeira. Quero refazê-los em outras pessoas ou em mim mesmo, mas em locais onde não me falte o ar que já não respiro há eras.

Mas nem todo o sangue do mundo fará o sentido do tempo mudar, e nem a mais afiada das lâminas porá um fim a minha dor retrossessa e autofágica. Não há esperanças a não ser esperar que Rá me leve em sua aura morna e amarelada. Que o vento possa me carregar e depositar um pouco de mim em cada lugar, na esperança de dividir o peso de meu passado por toda uma cidade. E que a cidade absorva em seu coração negro e pútrido as impurezas deste servo da noite e do mal, que nada soube fazer e que nenhum valor trouxe a este mundo infeliz. Não deixo proles, mas consequências. Não deixo obras, mas pecados. Não deixo nada, pois nada fui.

See Ya

6.4.04

Inexorabilia

Sempre que sei de alguém que está com câncer, fico pensando quando vai ser a minha vez. Quando serei eu diante do médico ouvindo que as célualas metastásicas alacançaram o pulmão e que uma cirurgia seria uma boa opção? Ou quando vou ouvir que as sessões de quimioterapia já não tem o mesmo efeito e o tecido está comprometido demais.

A quem será que confidenciarão aquelas coisas que médicos não falam direto para os pacientes se eu não tiver família e for viúvo, como prometi? Ficarão na salinha do café comentando que não tenho chance, mas como eles tem ética (i.e. não tem coragem), nunca vão me revelar. Como se eu já não soubesse que não tenho chances.

Depois de certo tempo, fica sem graça e até trivial saber que um dia você vai morrer. Chega um momento em que o que te atormenta é não saber como vai ser. O quanto você vai sofrer ou qual será o maldito orgão que falhará em sua missão e te deixará virar uma bola de pus e células cancerosas escondidas sob sua própria carcaça.

Você ainda pode descobrir quanta dor um ser humano é capaz de aguentar, antes de dormir eternamente. Sua garganta e boca podem doer tanto que você mijaria nas próprias calças, e mesmo assim você não poderia gritar. Você pode sentir tanta dor ao cagar e mijar que teria espasmos só de pensar pra onde vai a pouca comida que você consegue ingerir. Você pode deformar seu esterno e trincar uma costela por fazer força para respirar, e seus alvéolos podres vão ignorar o oxigênio e rir da sua cara. Suas células se voltam contra você e de súbito você percebe que não há como compartilhar aquilo, que não há volta e que estamos tão sozinhos quanto estávamos no começo.

Um dia eu vou ter câncer. Talvez você também tenha, embora lá no fundo você queira acreditar que certas coisas não acontecem com você. E nem deveria se sentir mal em pensar que um dia vai estar jogado numa cama, parecendo um poema de Byron, ou um filme com a Susan Sarandon. Se você rezar bastante, se tiver filhos pra cuidarem de você, se ganhar muito dinheiro. Você acredita que essas coisas podem amenizar o sofrimento. Melhorar suas chances ou pelo menos te dar um fim digno. Só um aviso: você está errado. Claro, você pode ter a sorte de ser o alvo aleatório de uma bala perdida. Ou ter um enfarte fulminante. Ou até morrer tranquilamente dormindo. Mas você não conta com isso, conta?

See Ya

5.4.04

Tecle 9

Nove. Um momento, por favor. Estamos transferindo para um de nossos atendentes.
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No momento todos os nossos atendentes estão ocupados. Aguarde! Sua visita é muito importante para nós.

*musica de elevador*
Quando Isso, um ano atendendo bem o mundo blogueiro.
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See Ya