1.10.04

Areias Malditas

Bateu tanto em Louise, que quando finalmente a largou ouviu o baque sujo e molhado do corpo da garota sobre a poça de sangue que havia se formado. Joseph parecia um açougueiro: o jaleco, que horas atrás fora branco, estava coberto de manchas e pedaços vermelho escuros. Havia respingos de todos os fluidos de Louise maculando o óculos, os cabelos e os sapatos de Joseph. Sobre a mesa metálica havia ferramentas, facas, serras e mais objetos familiares a Joseph e seu dia-a-dia como legista.

Olhou para o corpo pálido e, agora, espancado da garota e pulou por cima dele, se desvencilhando da visão, mas não dos cheiros e do clima tenso.

"Desgraçada! Quero ver você abrir a boca agora!" murmurou, como que com receio que alguém o ouvisse.

Alguém ouviu.

"Joseph, será que você nunca vai entender que o fato de eu já estar morta me isenta da dor e do sofrimento?"

Joseph não ousou olhar pra trás e encarar, mais uma vez, os olhos fundos, marcados e vazios do cadaver.

"Quantas surras você já me deu? Seis? Sete? Sabe que isso não vai me impedir de te dizer o que tenho a dizer."

O legista deixou-se cair, de joelhos. "Por que, Louise? Por que eu? Deixe-me em paz. Eu nem sei o que seu corpo está fazendo aqui. Você morreu no Cairo, do outro lado do Oceano Atlântico e..."

"Eu não morri no Cairo, Joseph. Eu morri no templo de N'Kai."

"Eu sei!!", gritou Joseph, e de repente teve medo de alguém no necrotério tê-lo ouvido. Foi ao fundo da sala e trancou a porta. Voltou, ainda sem encarar o corpo de Louise espalhado no chão. "Escuta aqui, sua vaca, me diz logo o que você quer. Eu não vou ficar de conversa com um cadáver. Eu não sou maluco."

Ouviu um risada baixa. Louise zombava dele. "Ah, meu querido! Eu sei tanto sobre a minha chegada a América quanto você. Mas o caso é que alguém invadiu o templo para me buscar. Me encaixotou, subornou quem foi necessário e me remeteu de volta a Chicago. Eu gostaria de ter vindo na primeira classe, mas não permitem clientes mortos por lá. Uma pena."

"Eu não acredito! Acharam seu corpo numa caixa, nas docas, e te mandaram pra cá. Fizeram de propósito, Louise. Queriam que eu te encontrasse. Olha, não tem cabimento eu coversar com gente morta. Vou te colocar de volta na gaveta. Não quero saber de nada disso.". Joseph caminhou na direção do corpo, ergue-o e colocou sobre uma das gavetas disponíveis. Não parou nem um segundo para pensar no que fazia. Apenas fazia.

"Joe, você precisa me ajudar. Por favor. Em nome de tudo que você considera sagrado. Você não sabe o que foi morrer em N'Kai. Eu nunca realmente morri nem nunca realmente voltei a vida. Meu corpo foi arrastado por todos os lados daquele templo. Fui revirada e violentada por aquelas criaturas nojentas. Fiquei perdida num limbo de mil Tsagas e tive de aguentar eles espalhados por dentro e por fora de todo meu corpo. Eu podia sentir tudo, Joseph. Eu enlouqueci e sofri demais. Enquanto virei um brinquedo sob aquela areia maldita, o Grande Deus devorou, pedaço por pedaço, minha alma. Eu ainda posso sentir sua língua áspera e monstruosa me agarrando e arrancondo pedaços de tudo que eu fui um dia."

"Cala essa boca!!!" Joseph esmurrou o rosto de Louise e o movimento resultante deixou à mostra o buraco feito pela bala do revolver de Hans, um ano antes, quando eles tentavam fugir do templo e Louise os traíra. A vaca mereceu ter morrido, ele pensou na época. Mas o sofrimento pelo qual ela passava não era justo pra ninguém. Contudo ele não podia mais dar ouvidos a essa loucura. E por outro lado sabia que seria assombrado para sempre pela bela e morta Louise caso não tentasse descobrir o que, ou quem, a trouxera de volta a Chicago. "Que se dane!". Bateu a gaveta.

Começou a limpar o chão, mas ouviu a voz surda de dentro da gaveta. "Joseph, seu maluco!! Você é um retardado doente que se meteu nessa de caçar criaturas porque nunca fez nada direito na sua vida. Seu desgraçado. Você é tão covarde que não consegue nem enfrentar seu destino de frente. Pára de achar que mortos não falam ou andam e que as criaturas que você caça são aberrações. Elas são a maioria e são muito mais normais que você, seu puto doente. Agora abre essa gaveta e ouça o que eu tenho a dizer."


Encostado ao armário, Joseph se mantinha calado. Já não limpava mais o chão e o suor escorria por sua testa, apesar do frio de janeiro. Lentamente ele esticou o braço e tocou a alça da gaveta.

"Anda logo, abre essa droga de gaveta!!!!!", Louise gritou mais uma vez.

O legista puxou de uma vez, e lá estava o corpo, ainda surrado, exatamente na mesma posição em que fora deixado por ele. "O que mais você sabe, Louise?"

"Eu não entendia nada no templo, os homens que invadiram e roubaram meu corpo falavam alguma língua árabe, mas percebi que eles citaram um nome. Kusmenkovsky. Ou algo do tipo, me pareceu um nome russo."

"Isso é tudo?"

"Sim."

"Então veja se agora cala um pouco essa sua boca podre e deixa um vivo e covarde amigo te ajudar." Fez menção de fechar a gaveta, e Louise falou mais uma vez.

"Não me deixe muito tempo aqui trancada. E se encontrar o Hans, diga que pretendo retribuir o tiro que ele me deu na cabeça."

Joseph sorriu e fechou a gaveta. "Nem morta você deixou de ser rancorosa". Acabou de limpar o chão e saiu da sala, sabendo que a sua frente começava outra jornada insana guiada por monstros sobrenaturais e humanos enlouquecidos por sonhos de poder, parecendo brinquedos nas mão, ou tentáculos, de deuses que a maioria das pessoas nem poderia desconfiar que existem.

See Ya