11.11.03


Insônia - Parte Final
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"Vamos lá, Ale. Você precisa fazer isso"

"Foda-se mesmo", eu disse. "O que eu preciso fazer? Só quero terminar isso e sair daqui."

"Tudo bem. Normalmente nós chegamos no local principal do sonho, onde o Alvo está perambulando ou realizando alguma ação. Basta então encontrá-lo, ou chegar a um ponto onde ele possa ver, e destruir o sonho dele, transformando-o num pesadelo. Não se esqueça que você pode usar qualquer coisa que imaginar. Nada aqui é real."

Afirmei com a cabeça, confirmando que sabia daquilo. Era o fato mais estranho até agora: eu iria destruir a sanidade de alguém para salvá-lo. E mesmo não concordando eu iria fazer isso. "Simone, quando eu sair daqui eu vou embora. Chega. Não quero saber de projeto, sonhos ou pesadelos".

Ela apenas olhou tristemente em minha direção. "Acalme-se. Depois discutimos o que você vai fazer. Agora vá."

Virei-me para o beco e encarei a escuridão. Ratos, baratas, vermes e lagartixas passevam pelos arredores. Eu adentrei no labirinto de muros e portas, em busca do Alvo. O cheiro da podridão agredia meu nariz e minha mente, e o chão encharcado, lamacento e escorregadio dançava sob meus pés. Segui por algumas dezenas de metros, que pareciam quilômetros intermináveis, até que encontrei o que estava procurando: encostado a uma porta velha, apodrecida e úmida, estava o Alvo, um rapaz que aparentava uns 20 anos, embora naquele lugar não se pudesse confiar em aparências.

Vinda do chão, uma barra de ferro flutuou e chegou até minha mão. Concentrei-me na nuca do rapaz, que estava recostado e com os olhos fechados. O golpe seria certeiro e ele morreria em seu pesadelo, embora talvez nem percebesse o que , de fato, havia acontecido. Minha proximidade não o despertou, pois assim eu desejei. Esperava pegá-lo de surpresa. Uma morte rápida e quase indolor deveria servir para o pesadelo. Eu não queria causar em outra pessoa o mesmo pânico que sentira naquela fatídica noite, no parque de diversões dos meus sonhos.

Minha respiração estava difícil e minhas pernas começavam a amolecer. Levantei a barra, já antevendo o espirrar de sangue e miolos. Mas o que eu temia ver nunca aconteceu: antes que eu pudesse baixar a barra em direção ao rapaz, ela foi puxada de minha mão, arrancada como que por alguma força telecinética. A barra atravessou o espaço do beco e foi pousar em outro lugar. A sensação de pânico subiu por minha espinha, e minhas pernas amoleceram de vez, negando-se a me obedecer: do outro lado do beco, segurando a barra de ferro, estava a Velha. Meu Nemesis. Aquela mesma criatura que me fizera despertar para o pior pesadelo da minha existência.

Eu mal podia entender ou aceitar aquela visão aterradora. Imediatamente pedaços de corpos começaram a brotar das poças de lama espalhadas pelo beco, e eu já não podia ver o Alvo, já coberto por uma das ondas de sangue no mar rubro que começava a se formar ao meu redor. Tentei me levantar, mas já não podia. Com o mesmo riso debochado e insuportável a Velha começou uma lenta caminhada em minha direção. Num esforço desesperado, eu me levantei e comecei a correr. Passos largos e rápidos, mas que não me levavam a lugar algum. Quanto mais eu me afastava, mais ela se aproximava. Por um segundo resolvi voltar-me pra ela e lutar, mas quando tentei fazer isso, descobri que não conseguia mais vê-la. Eu só sabia que ela estava lá, aproximando-se, mas sem poder determinar de onde vinha meu inimigo.

A corrida pelos becos parecia interminável, e quando eu a encontrei novamente ela estava junto de mim, segurando a barra de ferro e gargalhando. Para evitar ir de encontro a meu Nemesis, tentei parar em meu desesperado percurso, e acabei no chão, escorregando e completamente indefeso. Eu já me sentia sufocado pelos miolos e orgãos que flutuavam diante de mim. Quase automaticamente, ergui meu braço em busca do estabilizador. E quase automaticamente, como se fosse capaz de antever meus movimentos, a Velha segurou em meu braço com a força de 10 homens e em um segundo eu não podia fazer mais nada. Meus gritos por socorro sufocavam-se em meio a tanto sangue e vísceras. E eu tentava me debater quando a primeira pancada veio. A Velha acertou minha cabeça com a barra e senti meu rosto esquentar, como se algo tivesse sido arrancado, enquanto observava parte de mim mesmo se dividir como carne podre à minha frente. Eu enlouqueci: não podia vencer a força que mantinha meus membros paralizados, e somente poderia sentir as pancadas desferidas, uma a uma, contra meu crânio. Lembrei-me das palavras de Fred, dizendo "o estabilizador impede que você desperte nos sonhos de outra pessoa", antes de perceber que meu cérebro fervia, e perder a consciência.

Fui arremessado para outro corpo. Um rapaz de vinte anos. E de repente eu nunca mais fui eu. Tentei tomar o controle da situação, mas ninguém permitiu. Os pais do garoto nunca entenderam por que ele mudara tanto e agora falava de invasores de corpos. Eles nunca perceberam que a consciência do filho deles havia morrido e que agora eu estava preso no cérebro do garoto. Eu mesmo nunca entendi. Eu podia falar, me expressar, mas mal tinha o controle do corpo que habitava. Em algumas semanas, nenhum médico soube dizer o que ocorria, e obviamente nenhum deles acreditou em mim. Fui sedado dezenas de vezes e por fim fui internado, onde até hoje sou mantido. A segurança é muito forte, e já sofri diversos abusos, principalmente quando os guardas perceberam que eu não dormia e via tudo que acontecia ali durante a noite.

Hoje eu fecho os olhos à noite e tento acalmar minha respiração. Finjo bem, e quase nunca percebem que estou acordado. Mas minhas olheiras aumentam a cada dia. E lá, no escuro do dormitório onde passo minhas noites, recolho minha mente e tento esquecê-la, já que minha memória fica vagando por aqueles becos onde já estive uma vez, me mostrando sempre a mesma coisa: dessa última vez, meu Nemesis estava diferente. Tinha a mesma feição e o mesmo gosto pelo riso aterrorizante. Mas algo não era como da primeira vez: desta vez a Velha me espreitava com dois enormes e faiscantes olhos verdes.

See Ya