8.7.03

Saudade às avessas

Tenho saudade daquela época em que eu, aos 40, acreditava que viveria até os 100. Naquela época eu saía correndo de casa, depois de muito trabalhar, e ia para o teatro, me apresentar. Era bem corrido. E eu ainda guardava tempo pra escrever meus livros. E mesmo pra ficar, aos domingos, ao lado de amigos de longa data. Aqueles eram tempos maravilhosos.

Também me lembro com saudosismo de quando eu cheguei aos 50. Nunca me sai da memória aquela viagem que eu e Ela fizemos juntos. Todos aqueles lugares, todas aquelas pessoas. Era, na época, e ainda é, tão nítido pra mim que eu estava lá realmente vivendo a minha vida, aproveitando tudo que eu poderia, ao lado da pessoa que verdadeiramente me completava. Ahhh essas viagens!! Eu ainda tinha vigor físico para longas noites de deleite e vigor mental para jogos aguçados e conversas frívolas ou densas.

Contudo, tenho ainda mais saudades da minha década seguinte. Eu ainda tinha amigos, alguns parentes. Ainda podia me lembrar de qualquer um deles e ligar, ou mandar uma mensagem, que teria retorno. Hoje não posso mais fazer isso e em breve muitos outros não poderão fazê-lo comigo também. Mas me lembro que aproveitamos muito tudo isso. Que nossos últimos anos juntos estiveram entre os melhores e que realizamos sonhos que tínhamos há muito tempo. Alguns desde a infância. Nesse tempo eu acho que realmente entendi coisas importantes sobre a vida e a morte.

Tenho sim, saudades de cada ruga dela, que já viram tantas coisas boas que fizemos juntos. E dos meus amigos, que ainda eram os mesmos palhaços e bobos e adoráveis. Antes ou depois da minha derradeira partida.

Saudade pra mim é assim, às avessas. Quero sentir saudade do que ainda não fiz, do que ainda não vi. Pois a saudade, aquela comum e que sempre temos, a todo instante nos sorri. E o brilho deste sorriso é a nostalgia. E a nostalgia é o gume que nos fere e nos rasga e nos faz lembrar de tudo que tínhamos e não temos mais, ou de tudo que fizemos e nunca mais faremos da mesma forma.

E não existe nostagia na saudade às avessas, pois o brilho de seu sorriso é vontade. Vontade que podemos usar para sonhar e construir coisas de que um dia teremos nostalgia, mas que por enquanto, podemos moldar e moldar e moldar, até que, aquilo que fizemos tantas vezes em nossos sonhos e pensamentos, possamos fazer de novo, da mesma forma, no mundo real, e com isso possamos alçar vôo para novas saudades do que ainda está por vir.

See Ya