Os Grilos - Parte Dois (Leia também a Parte Um)
- Formigas!!
- O que !?! - respondeu a voz do outro lado da linha.
- Formigas! Eu detesto formigas. Sou capaz de esmagar uma trilha inteira delas.
A sala estava quieta. Televisão desligada, som num volume baixo, quase inaudível, enquanto Pedro Nunes falava ao telefone. Sentado num sofá e bastante entretido com a conversa, ele não se deu conta da repentina queda de temperatura. E mesmo que tivesse percebido, teria culpado o inverno e nunca adivinhado que tal fenômeno era o prelúdio de uma intervenção sobrenatural.
- HA!! Eu não disse que ia dar certo? Que esse negócio de jogo do copo funcionava mesmo? E aqui estamos. Na casa do maldito comedor de grilos!!
O grilo mais estressado já comemorava e sentia-se pronto para aplicar seu plano de vingança, quando percebeu que o outro grilo, vítima fatal de um soco, estava a seu lado, catatônico, quase hipnotizado, olhando para frente.
- O que foi? Paralizou? A viagem do Paraíso até aqui de deixou desnorteado? Ficou mudo? O que tá acontecendo com você? Fala alguma coisa, PORRA!
- I see dead crickets!
- O que !?
- I see dead crickets!
- Tá maluco? Claro que você vê. Também está morto, oras!
O outro grilo recuperou seus movimentos e deu uma leve balançada nas asas.
- Ahhh é! Mas sei lá, sempre quis dizer isso!
O grilo mais estressado mexeu suas antenas e levantou uma pata (que expressividade!!).
- Quer parar de besteira? A gente tá aqui pra um assunto sério. Viemos vingar nossas mortes, tá lembrado?
- Claro, né? Você acha que eu ia esquecer desse comedor de grilos dos infernos?
- Ahhhh bom. É isso que eu quero ver. Ódio nos seus olhos. Fúria. Raiva. Muita raiva.
- Grrr! Lazarento! Vou ensinar esse cara a nunca mais comer um grilo na vida.
- Ótimo, ótimo. Agora vamos. Já pensei em todo o plano.
Pedro acabara de desligar o telefone e levantou-se do sofá, olhando em volta para encontrar o controle remoto da TV, enquanto pensava em comer algo. E de repente viu, como uma marca esverdeada maculando a parede, um grilo, enorme, de uns 10 centímetros.
- Já vou te avisar - vociferou Pedro, contra o animal - Eu odeio insetos. Da ultima vez ainda tive a compaixão de ir pegar algo pra comer antes de matar o grilo, aliás, bem parecido com você. Feio pra diabo! Mas dessa vez não tem chance não. Adeus, bicho nojento!
E repentinamente uma voz veio pelas costas de Pedro, que o fez virar para encarar um outro grilo, que estava sobre a mesa de centro, ao lado de um prato, repleto de farofa. Seca e amarelada farofa.
- Não está com fome, assassino? - bradou o grilo mais estressado, ao lado do prato.
- Assassino? De grilos? - Pedro olhou rapidamente, mas com desdém, para o grilo na parede e lembrou-se do fatídico (para o grilo) episódio - Matei o inseto - confessou - E daí? Quem manda a droga do organismo quitinoso e hexápode invadir o meu apartamento? Virou estatística.
E nem bem terminou a frase, foi atacado pelo grilo que estava na parede. O inseto fez um veloz razante próximo à cabeça do rapaz, que num movimento de puro reflexo recuou e acabou por cair sentado novamente no sofá. Neste instante os dois grilos avançaram sobre ele. O mais calmo voou diretamente para o peito de Pedro e o mais estressado o seguiu, com mais dificuldade, pois carregava uma colher cheia de farofa.
- O que é isso? Grilos vingativos vindos do além? Então essa praga existe até no pós-vida. Eu não acredito. E de onde você tirou um prato de farofa? Grilos carregando colheres? Tá meio holywoodiano demais isso aqui, não?
- Bem - disse o mais estressado - As verbas e técnicas pra efeitos fantasmagóricos e sobrenaturais aumentaram muito com a presença do Spielberg.
- Ahhh... mas... peraí, o Spielberg não morreu ainda!
O grilo mais estressado fez um rápido movimento com o abdomén e então com a asa esquerda.
- Como vocês, humanos, são idiotas. No pós-vida tudo é atemporal. Não precisa esperar alguém morrer aqui pra presença dele estar no céu.
Pedro parecia ter encontrado um gancho para ganhar algum tempo.
- Poxa! Então vocês não precisam me matar, né? Se tudo é mesmo atemporal, é como se eu já estivesse morto.
As duas antenas do vingativo grilo mais estressado ergueram-se - Bem...
- NÃO MUDA DE ASSUNTO, SEU COMEDOR DE POBRES E INDEFESOS INSETOS. AGORA VOCÊ VAI PAGAR PELO QUE FEZ! - a voz do grilo mais calmo se fez ouvir por todo o recinto.
- Comedor? Mas eu...
- CALA A BOCA! CHEGOU SUA VEZ DE SER HUMILHADO E ESMURRADO COMO UM INSETO.
O grilo calmo, que repentinamente fora tomado de uma fúria incontrolável voou na direção deseu companheiro de vingança e tomou a colher para si, mas Pedro aproveitou o movimento de seus predadores para tentar levantar.
Num movimento rápido, o grilo mais estressado voou na direção do rosto de Pedro e o acertou próximo dos olhos. E a reação natural do rapaz gritar, com o susto do movimento, ou por dor. De qualquer forma o movimento foi infeliz. Aproveitando-se disso, o grilo mais calmo enfiou a colher cheia de farofa na boca de Pedro, que mais uma vez foi forçado a voltar ao sofá.
- AGORA É O SEGUINTE: AINDA VOU TE DAR UMA ÚLTIMA CHANCE. COM A BOCA CHEIA DE FARINHA VOCÊ DEVE FALAR O MEU NOME SEM CUSPIR UM SÓ FARELO DA MESMA. SE CONSEGUIR, VOCÊ SERÁ POUPADO, MAS NUNCA MAIS VAI ENCOSTAR NUM INSETO. SE FALHAR... - e então as asas do grilo mais calmo se agitaram - ...UM EXÉRCITO DE GRILOS ESTÁ REUNIDO AÍ FORA. TODOS MORRENDO DE RAIVA DE VOCÊ. SE VOCÊ FALHAR E CUSPIR FARINHA, ELES VÃO ENTRAR E NÃO VAI DAR NEM PRA RECONHECER SUA ARCADA DENTÁRIA.
Pedro fez uma cara de que estava entendendo, e ele já se via sem saída. Olhou então para os grilos, como que aceitando seu destino e decidido a encarar sua provação final, por mais absurad que ela parecesse. Encarou então seu carrasco, esperando que o nome do mesmo fosse revelado.
- Eu me chamo ASTOLFO, revelou o grilo.
O rapaz sentiu suas pernas amolecerem e sua pulsação aumentar. Suor escorria por suas têmporas. Jamais sairia vivo de lá. Mas tentou. Abriu a boca e tentou. Apenas tentou.
No segundo seguinte ao estapafúrdio esguicho de farinha, centenas de milhares de grilos invadiram a sala e o pobre Pedro, como muitos insetos que cruzaram seu caminho, virou estatística.
- Sabe que já me sinto bem melhor - disse Astolfo, mais tarde.
- Pois eu não! Ainda temos muito trabalho. A primeira parte foi difícil e ainda temos o segundo plano para colocar em prática.
- Como é mesmo o nome do...
- Marco Aurélio - respondeu o grilo mais estressado, com um estranho brilho nos olhos!
++ FIM DA SEGUNDA PARTE ++