26.9.03

Quem quer ser Lecter van Helsing?

Amanhece mais um dia. A luz acinzentada da manhã deita-se sobre meus pés, ainda na cama, enquanto flocos de neve descrevem seu percurso suicida rumo ao solo gelado, endurecido e cheirando a sangue velho das ruas de Chicago. Percebo que dormi novamente sobre os livros, ou será que foram eles que me fizeram adormecer e ter todos aqueles pesadelos?

Ligo o chuveiro. A água morna arranca do meu rosto os últimos sinais da noite mal dormida e dos pesadelos que a acompanharam, e tal qual um tentáculo saído de um nicho de sombras, minhas memórias sobre a noite passada começam a retornar, ainda espalhando arrepios por meu corpo, como arranhões de uma garra gelada e monstruosa.

Sento-me na cama. A primeira imagem mais nítida que me vem a cabeça é a da garota. Sarah. Sarah era o nome dela. Num minuto eu sentia sua mão trêmula, transpirada e quente sobre a minha própria mão. E em seguida tudo que eu via era uma mulher desesperadoramente histérica, lívida e fora de controle. Seu rosto distorcido como a imagem da própria morte refletida no Lago Michigan, olhando para aquilo que seria seu fim. Olhando para o terrível e assustador tentáculo que partiria seu corpo ao meio no segundo seguinte.

E Barker. Nunca saberemos se nosso companheiro ficara cego ou passara a enxergar tudo que não devia em seu derradeiro momento, antes de ter do peito arrancado o próprio pulmão e ter sido jogado no abismo onde seu espírito se contorcerá para todo o sempre em agonia lancinante e na companhia de devoradores de almas.

Mas eu salvara todo o resto. Todos eles. Idiotas. E agora isso já parecia tão distante e sem importância. Outro espasmo gelado na espinha trouxe-me de volta para o mundo real. Minhas lembranças me deixaram por um segundo, só para que eu percebesse que isso era minha vida agora. Estudar, estudar e estudar. E sempre precisar fugir do objeto de meus conhecimentos. Sempre precisar esquecer o que as sombras das noites geladas traziam para mim. Tentar escapar das mãos e bocas de escuridão que tentavam me envolver a cada noite. Fosse em sonho ou no mundo real.

Esse agora era o meu destino. Conhecer e perseguir criaturas que espreitavam nos cantos escuros das mentes e vidas de pessoas inocentes. Ou não tão inocentes assim. Ignorantes, eu diria, se eu mesmo não soubesse tão pouco dos movimentos realizo neste tabuleiro. E que monstros eram aqueles? Forcei minha mente para buscar a última imagem da noite anterior e tudo que obtive como resposta foi a sombria impressão daquela maldita casa. Uma mansão inteira disposta a engolir tudo e todos ao seu redor. Andávamos por corredores que eram as milhares de gargantas de nosso próprio predador. Toda a realidade tornou-se elástica dentro daquela casa e toda a vida e todas as coisas, até mesmo o ar que em nossos pulmões adentrava, era o próprio sangue da criatura. Tudo ali respeitava a mesma vontade e tinha um mesmo nome. Nyarlatothep.

De um salto coloquei-me em pé. Uma agonia petrificante tomava conta de mim. Minha garganta fechava e meus olhos queimavam imersos em suas órbitas borbulhantes. Minha mente desfazia-se e por um instante vi meu corpo espalhar-se pelo chão. Arrastei-me até a porta e nesse momento descobri que não havia mais portas no mesmo lugar onde elas sempre estiveram. E a cama? E os livros? E o banheiro? Deus. Eu não estava em minha casa! Não mais. Senti um enjôo alastrar-se por meu estômago e como um fugitivo desesperado fui procurar e encontrar a porta em outra parede. Saltei na direção dela e me arrastei pelos metros seguintes. Mas antes que eu pudesse tocá-la, alguém entrou.

Eu estava de volta à cama. A mesma cama. Tudo que consegui reconhecer foi o homem que havia entrado, agora saindo do quarto. Em seu peito, uma identificação gritava claramente o nome de minha nova casa: Hellsburg Sanatorium. E como se ali eu estivesse protegido, eu pude fechar os olhos novamente. Talvez tivesse comprado minha passagem de volta ao mundo da sanidade.

Talvez.

See Ya

PS: o conto acima foi baseado na campanha de RPG Sombras e Metralhadoras, mestrada por este que vos escreve. É uma campanha do jogo Call of Cthulhu, publicado pela Editora Chaosium, que descreve o universo criado por H.P. Lovecraft