1.11.06

Olhos de Mosca

Estranho que agora eu só possa contar essa história pra você. Sempre achei que isso daria uma história para um bom livro. Guardei essa história na minha bagunçada memória, esperando um dia poder ver meu nome abaixo do nome que dei a ela, na capa de um livro. E agora somente você pode conhecê-la, embora eu saiba que você já a conhece até mesmo melhor do que eu, que a inventei. Porém, vou contá-la assim mesmo.

Como em muitas daquelas noites, eu me encontrava sentado junto a uma escrivaninha mal acomodada, meio apertada, abarrotada de livros, papéis, anotações, gavetas repletas de mais papel, outros livros, elásticos, canetas, borrachas, lápis e até de algumas revistas que minha idade, na época, tornava ilícitas, conseguidas a muito custo numa banca onde o atendente era um velhinho meio cego, e que mal enxergava o que eu estava comprando.

E mesmo sendo uma noite igual a tantas, foi diferente de muitas outras, pois nesse dia, ela chegou e pousou sobre a mesa, e ficou me observando enquanto eu sofria para concluir uma lição de casa de português, ou Língua Portuguesa, como minha professora diria. Soube que a carrasca morreu de câncer no cérebro. Lembro de ter visto uma foto dela num álbum de formatura, anos depois, mas o álbum tinha uma pequena e estranha mancha, exatamente sobre a testa de professora. Não consegui lembrar do rosto dela completamente.

Professoras mortas à parte, eu percebi que aquela mosca havia pousado na mesa e ficara me observando por mais de 30 minutos. Ela lavou as asas, as patas anteriores e posteriores. Lubrificou as patas e seu aparelho bucal. Coçou seu abdomén bojudo e esfregou os olhos. Fitou-me diversas vezes, como que tímida, mas parecia confiar em mim e saber que eu não iria esmagá-la entre duas páginas de um livro ou sequer espantá-la de seu local de saneamento. Ela estava certa, eu não iria. Termimou seu banho, ensaiou um olhar direto, mas desviou seus milhares de olhos quando eu a encarei. Deu uma última chacoalhada e vôou.

Voltou na noite seguinte.

Algumas pessoas dizem que moscas vivem apenas 24 horas em sua fase adulta. Talvez não fosse a mesma mosca. Talvez uma irmã, ou filha. Entretanto ela pousou na mesa para um delicioso banho e lavou-se na mesma ordeira e precisa sequência. Nessa noite eu comia um pedaço de pão doce, e deixei cair, de propósito, uma pequena lasca perto dela. Como que entendendo minha intenção, a visitante alada não partiu, mas também não provou da iguaria oferecida por mim. Terminou seu banho e se foi, dando um rasante sobre o livro de geografia.

Na próxima noite eu fui para o quarto fazer minha lição um pouco mais tarde do que de costume. Acendi a luz quente e amarelada e a vi. Estava novamente sobre a escrivaninha, mas dessa vez deleitando-se com a lasca de pão doce que ficara sobre a mesa desde a noite anterior. Aproximei-me e ela não se incomodou. Aproveitei o ativo e dedicado momento de sua alimentação, para pegar uma lupa que estava em uma das gavetas e observá-la mais atentamente.

Sua cabeça era um amontoado de minúsculos olhos vermelhos. Ela podia me ver fazendo aquilo, certamente, mas preferiu se deixar obervar. Entre nós já não havia quase tensão, e também percebi que ela gostava de ser olhada, dada a forma como levantava e exibia suas brilhantes asas para mim, deixando a mostra seu grande abdomen amarelo de aspecto purulento. Abaixo de seus olhos vi sua boca, ou melhor, seu aparelho bucal. Através dele ela estrategicamente regurgitava parte de sua saliva, parte de outros sucos digestivos sobre a lasca de pão que, aos poucos, se tornava uma massa branca e disforme, sendo corroída pelo humor ácido saído de seu predador. Enfim, sem a menor cerimônia, ela começou a lamber o monte de vômito e pão que havia feito. Lambia com tal avidez e precisão que parecia mesmo se deliciar. Suas asas tremiam de excitação e seus milhares de olhos brilhavam e lampejavam sob a luz do meu quarto. Por alguns segundos eu mesmo tive vontade de provar da especiaria que estava sendo externamente digerida sobre minha escrivaninha. Senti-me estranho com tal desejo repentino, e o repeli, mais por respeito a minha recém adquirida amiga do que por nojo, propriamente dito.

A refeição foi breve, e depois daquilo ainda nos observamos por alguns minutos. Estiquei meu dedo até próximo dela. Eu pensava se ela estaria entendendo minha mensagem, se estaria ouvindo meus pensamentos que diziam para ela se aproximar. Estávamos absortos naquele momento estranhamente íntimo. Mesmo sem a lupa eu podia vê-la me olhando nos olhos. A imensidão vermelho escura de milhares de olhares me fitando foi tomando conta de mim, e eu apenas queria que ela se aproximasse. Ela não era maior que uma de minhas unhas, mas mesmo assim surpreendeu-me quando deu um passo - na verdade, um salto - em minha direção. Repentinamente eu recolhi minha mão num movimento brusco. Assutei-a, e ela saiu voando. Cruzou a frente do meu rosto e tornou-se uma silhueta diante da luz da lua, antes de deixar meu quarto.

Naquela noite sonhei que centenas de moscas andavam sobre meu corpo, como que tentando me conhecer melhor, me ver melhor em seus olhos e me sentir melhor sob suas patas. O mais estranho é que foi um sonho bom.

See Ya

PS: Esse texto foi originalmente publicado no Quando Isso Virar Um Blog em abril de 2004. Em homenagem ao novo visual do blog, e também porque gosto demais desse texto, republico-o hoje.