18.9.06

112

Se você não esteve fora ou desconectado do país na última semana, deve ter ficado sabendo que o coronel Ubiratan Guimarães foi assassinado com um tiro no sábado passado, no apartamento dele (que, por uma infeliz coincidência, fica na esquina do lugar em que trabalho há anos). Aparentemente foi morto pela namorada ou por alguém bem íntimo, que usou uma das sete armas que ele mantinha em casa. Aliás, para quem fez campanha ferrenha contra o desarmamento, isso é no mínimo irônico. Ou seria patético?

Quem era esse senhor? Foi o comandante do massacre de 111 presos no Carandiru em outubro de 1992. (Ele "não admitia" que o acontecimento fosse chamado de massacre; mas, como há um limite para quem ele comandava, foi assim que ficou conhecido.) Não vou me alongar aqui sobre o incidente; existe bastante literatura sobre isso. Basta mencionar que houve quem foi eliminado dentro da cela e vários que receberam tiros pelas costas. Um dos sobreviventes escondeu-se sob os corpos e fingiu-se de morto para escapar da matança.

Na realidade, o que quero destacar é o que se passa pela cabeça de seres como o coronel e seus pares. Cito algumas falas ouvidas no velório do sujeito: "Pena que não foram logo 1.000. Não haveria PCC, não haveria esse medo" ["pérola" proferida pela mulher de um ex-comandante do regimento 9 de Julho, referindo-se ao "maior feito do coronel"]. Mais uma: "Se todo mundo fizesse o que ele fez, estaria ótima a sociedade" [do irmão Ubirajara, sobre o mesmo ato].

Não que isso me surpreenda. Os da caserna não são exatamente famosos por sua capacidade intelectual; muito menos por sua flexibilidade e evolução. Tenho um amigo que, tendo passado em um concurso público para uma boa posição em Brasília, após pouco tempo pediu exoneração por não conseguir conviver com a burrice dos militares que o cercavam. Desconfio que ele tinha medo que ela (a burrice) fosse contagiosa. Segundo esse amigo, "militar só entende de duas coisas: burocracia e hierarquia", ou algo nessa linha.

E o coronel, especificamente, era um típico exemplar da raça: orgulhava-se de ter sido apresentado ao regimento de cavalaria da Polícia Militar de São Paulo em 31 de março de 1964 -- data apócrifa do golpe militar. Foi comandante da ROTA (aquela do Maluf: "a rrrota na rrrua", conhecida por sua truculência). Quando assumiu o policiamento metropolitano, disse que "estava aberta a temporada de caça aos bandidos". Achou lamentável a nomeação de uma mulher para uma posição de destaque na PM. Sobre o massacre, dizia que era um "herói". Em julho de 2001, foi condenado a 632 anos de prisão pelo tal "heroísmo", condenação que foi anulada pelo TJ há sete meses.

Pessoalmente, não consigo imaginar como pode ser defensável massacrar 111 pessoas pelo simples fato de serem presidiários. Claro que há boa parte que representa ameaça (o que não justifica seu assassinato, de qualquer forma), mas também há aqueles que estão lá pelos erros do próprio sistema. Ou todos já se esqueceram daquela moça que ficou um ano presa porque roubou um frasco de xampu e, na prisão, teve o olho furado? Ou aquele outro que, negro, cumpriu pena no lugar de seu homônimo, branco? Esses mereceriam tal destino? Acho que não.

Isso mostra o que se pensa, se diz e se faz no "ninho perverso" onde se criam e se alimentam os militares (antes que alguém me jure de morte, quero deixar claro que sei que nem todos são assim sádicos e estúpidos, mas esta é a grande maioria observável). Lembrando que, além de tudo, são sustentados por nós, a massa de manobra chamada coletivamente de contribuintes.

Vamos pensar um pouco sobre que impacto isso tem no nosso dia-a-dia? O que esses obtusos -- e os demais que os apóiam, como os 56.155 que elegeram o coronel Ubiratan deputado estadual -- não vêem é que justamente seus valores e ações contribuem para criar e adubar o solo para que surjam PCCs e etc. Basta enxergar um pouco além da miopia imbecil que os cerca.

Na minha humilde opinião, o que esse pessoal não percebe é que enquanto eles pensarem e agirem assim -- querendo criminalizar tudo e todos; tentando reduzir a maioridade penal para colocar crianças na escola do crime; partindo para a violência indiscriminada e ostensiva; construindo prisões/depósitos de gente cada vez mais numerosas e maiores --, estão exatamente criando o caldo de cultura e o berço para que o crime seja cada vez mais organizado e "profissional". Um colega da PUC outro dia comentou, na aula, que havia visto policiais procurando uma bomba em um ônibus enquanto ele passava por perto a pé. Mais adiante, passou pelo cadeião de Pinheiros, que está sendo ampliado. E pensou: "acho que estão procurando a bomba no lugar errado"...

Enquanto isso, com os olhos inebriados pelas imagens na mega-TV de plasma; com os ouvidos ocupados pela melodia no iPod; com os poros anestesiados pelo ar-condicionado do carro blindado; com os desejos seqüestrados pelo próximo sonho de consumo que nos será enfiado goela abaixo pelo "mercado"; não estamos vendo que a exclusão a que condenamos os "marginais" -- nem que seja pelo nosso silêncio e individualismo exacerbado -- os faz cada vez mais numerosos e raivosos. E que, não vai demorar muito, eles serão bem mais e mais organizados que nós. Aí, sim, vamos atinar para este caminho. Mas será tarde demais.

Quanto ao coronel, agora são 112 lá do outro lado. E ele chegou sem seus "companheiros de farda", armas e munição que o fizeram tão valente. Deve ter sido um embate interessante.