27.12.05

... e cinco anos da partida

Áurea,

Tudo bem aí onde você está? Espero que sim.

Hoje você faria aniversário. Algo em torno de um século de existência. E logo adiante temos outra data relevante se aproximando: no próximo domingo faz cinco anos que você partiu. O tempo voa, não é mesmo? Tenho vividamente comigo a lembrança da última vez que nos olhamos nos olhos. Eu estava ajoelhado na sua frente, para ficarmos mais ou menos na mesma altura. Abracei sua cintura e pedi sua bênção, como sempre. Naquele momento, no meio das lágrimas suas e minhas que se misturavam, vi que havia algo diferente. Só muito tempo depois fui entender que era uma despedida definitiva. Algo que você, com sua intuição incrível, deve ter sabido desde ali.

Não me surpreende que você tenha morrido no dia 1º de janeiro de 2001. Não combinaria com você uma data qualquer -- tinha que ser o primeiro dia do novo milênio. Você não é nada fraca, não, né? Se bem que houve aí uma certa contradição sua: você vivia dizendo "a mil chegarás, de dois mil não passarás". E você passou, afinal. Como assim? ;-)

Resolvi escrever hoje para compartilhar com você algumas das sensações que venho tendo nesses cinco anos e que, essencialmente por covardia, não tinha conseguido registrar. Desculpe o texto canhestro, falho e brega. Mas é o que consigo neste momento.

Uma das coisas que me diziam lá no começo -- logo após eu escolher seu caixão, segurar sua mão fria durante o todo velório e descer à sua sepultura junto com você -- era que o tempo seria um bálsamo para o meu sofrimento. Mentira deslavada. Fiquei durante uns bons anos acreditando nisso e tentando esquecer. Inútil. Sinto sempre o seu cheiro (que nunca foi "cheiro de velha"). Lembro-me todos os dias dos ditados e frases feitas que você usava à exaustão, e os uso. O gosto da sua ambrosia às vezes emerge dos recônditos do meu paladar. E hoje tenho a certeza de que o que tenho que fazer é reinventar todo dia a força e a serenidade (estranho, não?) de conviver com a dor e o "buraco" da sua ausência.

Para você ter uma idéia do que estou falando, faz algumas semanas eu estava no shopping na correria das compras de Natal. Passei pela vitrine de uma loja e nela vi um DVD do MacGyver (ou "Maigaive", como você dizia). Em uma fração de segundo veio à minha cabeça: "Já sei qual vai ser o presente de Natal da Áurea, ela vai adorar". E imediatamente depois pensei: "Não vai dar. Ela está morta".

De qualquer forma, não amaldiçôo esta dor. Ela só existe com a importância que tem devido ao amor incondicional que um dia nos uniu no mesmo plano e ainda nos une, e que atravessou brigas, gritos, problemas, diferenças, distância, intrigas, seu gênio do cão (e o meu idem) sem nunca arrefecer um milímetro que fosse.

Há algum tempo, não sei se você viu de onde está, sofri um golpe violento de alguém em quem eu confiava. No início, levianamente, achei que a dor se comparava à que senti quando você se foi. Só que a tal pessoa, mau-caráter a toda prova, não vale uma cusparada sua. Então aquela dor foi cedendo, diminuindo, sumindo... até sobrar só uma cicatriz que é incômoda, mas que tem a vantagem de servir de aviso para eu não cometer o mesmo erro novamente. Aliás, esta também (prevenir) era uma função que você exercia com freqüência, lembra?

Diz um filósofo desses contemporâneos que nossa identidade nada mais é do que uma combinação única dos textos/discursos/ações dos outros em nossa vida. Ou seja, que somos feitos da intertextualidade adquirida através dos contatos que estabelecemos durante nossa trajetória. Isso faz sentido para mim. E quero que você saiba que, se for mesmo assim, a parte mais forte da minha identidade é feita de Áurea. Para o bem ou para o mal (como se isso existisse).

É isso, vovó. Tenho saudades de você, mas sei que um dia vamos estar juntos de novo. Sei que, quando você quis desfazer o pacto que tínhamos desde a minha infância -- de que quem fosse primeiro, voltaria para buscar o outro --, foi para me proteger, por amor a mim. Mais uma vez. Mas vai ser muito feliz o dia em que a gente se reencontrar. Espera por mim, tá?

PS: Você vivia dizendo que você seria meu "tipo inesquecível". Pois bem, mais uma vez você foi bem-sucedida...