8.6.04

Cálculos em série

Deitou a faca sobre a mesa. A lâmina, ensangüentada, maculou a madeira velha e parte da puída toalha de mesa. Seus dedos tocaram o rubro líquido arrancado das veias de Alberto. Numa dança frenética, passaram a rabiscar a parede de azulejos amarelados que forrava a pequena cozinha. Por trás de seus olhos não via os rabiscos, mas imagens e formas e desenhos. Naquele momento transformava sua dor e seus instintos em fórmulas ininteligíveis. Números e letras e símbolos emprestavam seus significados para um panorama maior. Ali, estampado na parede, ele via, com mãos ainda trêmulas e olhar satisfeito, uma descrição físico-matemática dos princípios da Relatividade.

O próximo passo foi calculado, como todos os anteriores: dirigiu-se à pia da cozinha e lavou as mãos e a lâmina. "E se não houvesse pia na cozinha, ou mesmo cozinha, neste lugar?", pensou, sentindo um frio percorrer-lhe as costas e ir alojar-se na parte de trás de sua cabeça. Balançou a cabeça e decidiu não pensar naquilo. Não era possível uma cozinha sem pia, uma casa sem cozinha. Nunca haveria problemas. Tudo estava certo.

Voltou à sala e lá deparou-se novamente com Alberto, sentado numa das poltronas, com a garganta sorridente. Um sorriso rubro e escorrido, que ligava as duas orelhas do morto como um cordão macabro de caos e desespero. Ainda encarando as feições de sua mais nova obra de arte e lógica, sacou uma caderneta do bolso de trás da calça e abriu-o sem escolher página, como se já soubesse que as inscrições corretas lhe saltariam aos olhos:

Nicolau
Galileu
Nílton
Alberto


Entre duas páginas mais adiante, podia ver parte dos documentos de identidade dos grandes gênios que executara. Olhou por mais um instante e depois riscou também o último nome. Abaixou-se na direção do Pai da Relatividade. Mas não chegou a tocá-lo. Um estrondo na porta o fez desejar ter asas para que pudesse voar dali, do terceiro andar, e nunca mais voltar ao chão. Mas não podia, pois a gravidade o trairia, como sempre.

No primeiro estágio do desespero as funções mentais da memória ficam prejudicadas. Ele sabia disso, tinha certeza, mas havia esquecido quando a primeira onda de pânico o fez erguer-se e correr na direção da saída de serviço do apartamento. Girou a chave com cuidado, enquanto ouvia as batidas e brados na porta da frente. Em breve tudo estaria bem, pensava. Tudo se encaixaria perfeitamente na fórmula.

Alcançou o corredor e já podia imaginar as roldanas do elevador trabalhando para levá-lo para um lugar seguro, mas então lembrou-se da identidade. O último souvenir, a última cartada, o último motivo que faria toda sua obra se esvanecer em números pífios e fórmulas decoradas se não fosse obtido. Por um lampejo de lucidez, que era, na verdade, uma expressão de sua necessidade incontrolável de ordem, lembrou-se da identidade de Alberto, e jamais poderia sair dali sem o objeto que provaria que sua obra era, como uma teoria da física, infalível.

No segundo seguinte estava de volta ao apartamento. O atrito com o chão fazia barulho, mas ele não podia ouvir a propagação do som. Somente correu até a poltorna e tomou nas mão a carteira que antes jazia num dos bolsos do morto. Contudo, este foi seu último, e não calculado, movimento. A resistência da porta foi menor do que a dos chutes vindos de fora e uma prova de balística já poderia mostrar a trajetória, força e velocidade do projétil que o atingira. A equação nunca se igualaria a zero.

* * *

Escrevi o conto acima inspirado em meu amigo Nicodra que escreveu, há algum tempo, sobre Serial Killers brasileiros em seu blog. Assunto extremamente intrigante e interessante, fez-me rondar por alguns lugares cheios de livro e encontrar, surpreso, um exemplar de Serial Killers Made In Brasil, de Ilana Casoy, que já está em seu segundo livro sobre os matadores em série. Neste livro ela fala exclusivamente de matadores brasileiros, em 6 casos reais estudados e revisitados por ela. Entre os escolhidos estão celebridades mortais como Chico Picadinho, o Maníaco do Parque e o Vampiro de Niterói.

Fiquei tentado a adquirir o volume imediatamente, mas acabara de comprar outro livro e a gerente do banco não entenderia esta minha paixão pelo assunto tão facilmente. Assim, pra quem achava que esse "fenômeno" era privilégio apenas de terras do Tio Sam, Serial Killers Made In Brasil é um prato cheio. Suje suas mãos de sangue agora!

See ya