8.4.04

Cárcere

Repentinamente senti vontade de chorar. Nunca havia acontecido isso comigo. Eu já chorara antes, claro, mas nunca dessa forma inesperada. As lágrimas mancharam minhas roupas de vermelho. Olhei o céu um momento e me dei conta de que não o olhava há quase 70 anos. Tinha um medo instintivo de que um grande, amarelo e borbulhante sol estaria me aguardando logo acima de minha cabeça, pronto para me devorar e cuspir cinzas.

Deixei que as lágrimas corressem. Uma para cada ente querido que eu havia matado, ou deixado morrer e logo toda a cidade estaria rubra. Muitas lembranças e memórias deixadas para trás, pessoas e situações que haviam deixado muita saudade.

Apenas uma vez, anos e anos atrás, um intrépido e insensato rapaz havia conseguido cravar uma lança de carvalho em mim. Hoje ele está morto, mas a dor do golpe ainda permanece pulsante em meu peito. Contudo, a penetrante dor da madeira rasgando e agarrando-se ao meu tórax é apenas um lampejo de luz quando comparada à claridade incondicional que é a dor deixada por estas pessoas do passado e lembranças que remetem a elas.

As últimas palavras de uma garota cega. O último beijo de alguém carente e a recusa a um convite importante. A traição trazida pelas primeiras e imaturas noites. A noite de natal em que fui mais feliz do que em todas as outras. Um embate que mudou para sempre os rumos das coisas. A ignorância capaz de destruir uma amizade mais velha que o mundo.

Se pudéssemos ver os resultados de nossas ações antes de tomá-las! Ah, maldito tempo que escolheu o sentido errado para caminhar. Malditas horas que não se permitem serem menores que suas antecessoras. Mesquinhas e burras horas. Maldito tempo, que me fará lembrar de cada uma dessas lágrimas de sangue até o fim de minhas noites.

Quando o Primeiro foi amaldiçoado, o Pai soube elaborar, em toda sua perfeição, a mácula de seu filho maldito. Não concedeu que pudéssemos perecer pelo remorso ou arrependimento. E se hoje eu vertesse todo meu arrependimento e remorso em lágrimas, uma mancha vermelha poderia ser vista da Lua amarela e acusadora que banha meus olhos vermelhos. Quero voltar e desfazer certos nós que ainda apertam meu pescoço, embora não me sufoquem de forma derradeira. Quero refazê-los em outras pessoas ou em mim mesmo, mas em locais onde não me falte o ar que já não respiro há eras.

Mas nem todo o sangue do mundo fará o sentido do tempo mudar, e nem a mais afiada das lâminas porá um fim a minha dor retrossessa e autofágica. Não há esperanças a não ser esperar que Rá me leve em sua aura morna e amarelada. Que o vento possa me carregar e depositar um pouco de mim em cada lugar, na esperança de dividir o peso de meu passado por toda uma cidade. E que a cidade absorva em seu coração negro e pútrido as impurezas deste servo da noite e do mal, que nada soube fazer e que nenhum valor trouxe a este mundo infeliz. Não deixo proles, mas consequências. Não deixo obras, mas pecados. Não deixo nada, pois nada fui.

See Ya