14.11.08

Outra coisa

Não acordou e estava com vontade de escrever. Não acordou porque não havia dormido. Era outra coisa. O teto e a cômoda e a janela eram testemunhas e ele não havia dormido. E não sabia porque estava com vontade de escrever.

A própria idéia de escrever havia se tornado um câncer, com o qual estava habituado a conviver por quase dois anos. A princípio achara que era só um enjôo, uma coisa qualquer e o tratamento recomendado foi repouso. Precisava arejar as idéias, se deixar absorver pelo entorno do mundo. Pensava adquirir, consumir, engordar seu repertório.

Tinha vontade de escrever naquela época também, mas a dor martelava sua cabeça. Não podia ser uma coisa sem importância. Tinha de ser grande, importante, crucial. E era. Um câncer, uma ferida, uma chaga. Ficou obcecado: escreveria a qualquer custo, qualquer coisa. E não escreveu. Conformou-se em ver e ler e ouvir; sombras na parede, nuvens no céu, vozes ao vento. A própria idéia de escrever fazia seus olhos brilharem, mas sua cabeça doía, girava e a dor de se sentir impotente... esgotava sua pouca paciência.

Começou a se perder entre as palavras; o câncer crescia e ganhava espaço. Alimentava-se não de idéias, o desgraçado, mas de ânimo. Idéias tinha, aos montes, como moscas na carniça, como toques de um telefone frio e insensato, insistente. Era uma dor e um desejo de correr, a própria vontade de escrever.

Naquela manhã teve vontade de escrever, mas não escreveu, pela útlima vez. Não havia dormido. Era outra coisa. Era a total obliteração. Era morrer de sede no mar. Era saber tanto e conhecer tão pouco. Pela última vez a própria vontade de escrever foi outra coisa.

See ya