1.4.05

Jantar 265

Parou na beira do abismo e o contemplou. A iluminação avermelhada o incomodava um pouco. Não que não gostasse, mas achava que a ocasião não pedia tanto.

"Qur'an!!", gritou. "Apague o fogo dessas primeiras 6 piras. Isso aqui está claro demais".

Qur'an saiu de trás das pedras, rastejando. O Sibilo de sua língua era inconfundivelmente agudo. Não fosse o som ao fundo - pessoas berrando em agonia - seria terrível demais ouví-lo falar.

"Mas, Mestre, e os gritos? Se eu apagar as piras eles não vão queimar e sofrer".

O outro ponderou por alguns segundos. "Envie alguns dos seus escravos pra lá então e mande que eles torturem os que estiverem nas piras apagadas. Mande-os fazer cortes com papel embaixo das unhas dos condenados. Eles vão gostar". Por um segundo até mesmo esqueceu do compromisso que tinha e ficou imaginando a dor e a agonia. Bateu o casco contra a rocha suada, em sinal de satisfação. Lambeu os beiços deformados com sua língua bipartida.

"Sim, senhor. Algo mais, senhor?"

"Sabe, estou um pouco apreensivo, admito. Já faz tempo que não recebo visitas importantes." Olhou por sobre os ombros e viu a mesa disposta sob a sombra de um carvalho apodrecido. Sobre a mesa estavam os "talheres" de tortura - tesouras, foices, facas, morsas, martelos, correntes, discos do Latino, pintos de borracha, máscaras de couro - e a singela placa com o número 265.

"Qur'an, acho melhor trazer os viados pra cá também. Prometi a eles que poderiam me ajudar."

"O senhor vai cumprir uma promessa?". Qur'an parecia desconcertado.

Ele sorriu. "Não, não. Vou me divertir."

Qur'an deu de ombros. "Como desejar, Mestre. O senhor não trouxe a mordaça?"

"Não é necessário dessa vez. O italianos é que eram falastrões e auto-confiantes demais. O polaco vai contribuir. Aprendeu a ficar quietinho nas mãos dos soldados do Adolf. Aliás, avise-o também. Talvez ele queira vê-lo". Pensou por um momento. "Ainda melhor: traga os judeus. Vamos ver se aqui ele também sabe fingir que teve dó das vítimas do holocausto."

Olhando ao redor, Qur'an começou a achar que o lugar escolhido por seu Mestre parecia pequeno.

"Senhor, tem certeza sobre os judeus? Eles são muitos e meio agitados", riu internamente. "É dificil não ficar agitado depois de passar tanto tempo em câmaras de gás", riu baixinho. "E não se esqueça que ainda temos os bebês."

"Ah, os bebês!! Como poderia me esquecer deles. Pendure-os pelos pés, aqui em cima", apontou. "Quero que meu convidado possa vê-los e saiba que os mandou pra cá. Velho imbecil! Por conta de sua teimosia isso aqui agora parece uma maternidade. Milhares de abortadinhos pequenos e disformes todos os dias. Vá dormir com este barulho todo!"

"Não precisa ficar bravo, Mestre. Tudo vai ficar bem. Não se preocupe. Também já arrumei a cele dele, próxima das outras. E só não entendi uma coisa: se este é o número 265, porque só temos aqui 132 celas até agora?"

O Mestre respirou fundo o enxofre e procurou se acalmar. "Qur'an, seu idiota. Eu e Ele dividimos os Papas. Eu fico com os ímpares, e Ele, com os pares."

"Muito estranho Ele escolher metade pra sofrer aqui e a outra metade pra ganhar o reino dos céus".

O outro riu abertamente, uma gargalhada que se espalhou pelos abismos e piras e fossas de enxofre borbulhante. "Ganhar o reino dos céus? Nós dividimos mas eu os torturo aqui, e Ele os tortura Lá. Eu os torturo porque é divertido, mas também porque eles fingem tomar atitudes divinas e tomam atitudes humanas."

"E Ele?"

"Por serem humanos fingindo serem Deuses!!"

"Então eles não têm saída?"

"Usar as sandálias de Pedro é trilhar o caminho da tortura e do sofrimento, seja de qual lado for. Hehehehehehehe. Ahhhhhh se o Concílio aceitasse um voto meu! Adoraria ver o Trujillo calçando as Santas Sandálias. Mas nem tudo é perfeito."

Vindo de trás de uma pilha de corpos incinerados, outro Servo se aproximou. "Mestre, Mestre, ele vem vindo", abriu um largo sorriso de dentes pontiagudos e serrilhados. "João Paulo II morreu!"

E Satanás sorriu satisfeito. "Rápido, Qur'an, vá fazer o que mandei. E você. Mande um recado pros russos. Diga que ganhei a aposta: matei-o primeiro".

See Ya