5.10.05

O direito de ser assassino

Já adianto que o post é longuíssimo, que o assunto é o referendo sobre a proibição do comércio de armas e munição, e que vou defender o sim. Se você não estiver a fim de ler, passa amanhã.

Neste ano, quando completei dez anos de "paulistanidade", finalmente resolvi transferir meu título de eleitor de minha cidade natal para São Paulo. Minha idéia era estar preparado para votar em quem quer que seja contra o José Serra ou o vice dele.

Só que aí surgiu essa história do referendo e pensei: pelo menos vou usar o documento para algo mais útil e em que realmente acredito: votar sim à proibição do comércio de armas e munição no Brasil -- sabendo que vou no sentido contrário da imensa maioria das pessoas que me cercam. (O fato de, como eu, elas pertencerem à classe-média e dificilmente terem tido pessoas próximas mortas gratuitamente por arma de fogo talvez não seja só um detalhe...)

Eu poderia até começar a falar de estatísticas manipuladas e das fraudes como a adulteração de um artigo da Denise Frossard desmentida por ela própria, mas não é por aí que eu acho que a coisa pega.

O que pega, para mim, é antes de tudo uma visão de mundo. Uma visão de vida. Uma visão da raça humana. No limite, uma visão de si próprio. Basicamente, o princípio -- raso, na minha opinião -- de quem defende o comércio de armas é que a "população ordeira", ou o "cidadão de bem", tem direito à legítima (?) defesa. Ora, já começamos com uma incoerência: pensando dessa forma maniqueísta, cidadão de bem e arma de fogo não cabem na mesma equação, não é mesmo? Ao descarregar uma arma em um bandido, sou potencialmente tão assassino quanto ele.

[Pausa para uma curiosidade: a alcunha "população ordeira" não é a cara da ditadura militar? Não por coincidência, uma das minhas correspondentes mais profícuas na defesa do comércio de armas também envia mensagens dizendo que "com a 'revolução' era melhor" (pausa dentro da pausa: "revolução" é o nome mentiroso para o golpe de estado de 1º de abril que, simbolicamente, os militares anteciparam um dia para não cair no dia da mentira). Envia um tal de Decálogo de Lênin claramente apócrifo. Envia o vídeo de um discurso apoplético daquela aberração política chamada Jair Bolsonaro, atacando quem teve a coragem de enfrentar a tortura do porão durante a ditadura. E envia mensagens oriundas de listas como o boletim Taurusnews, dentre outras fontes...]

Bem, voltemos à questão principal. Um argumento de quem defende as armas é que a polícia não dá conta de conter os bandidos e que, dessa forma, é legítimo que cada um de nós assuma essa responsabilidade. Dentre as mensagens que recebi, uma delas pergunta explicitamente: "você confia na polícia e na justiça brasileiras?" e, diante da provável negativa, diz que as armas são a solução. Uma outra traz imagens do tipo "um criminoso só desiste com um argumento forte. Tenha no mínimo seis", com uma arma com seis balas ao lado.

Outra alegação que ouço é que drogas são proibidas e o tráfico está aí. Ora, drogas ilícitas o são desde o plantio ou a fabricação. Não dá para comparar, pois a primeira compra de uma arma de fogo sempre foi bonitinha, dentro da lei. Depois ela foi roubada pelo bandido "pequeno" que é aquele que vai brandi-la nos cruzamentos. Ou será que a Taurus e a Companhia Brasileira de Cartuchos - CBC têm divisões como a "Taurus Bandidos"?

Outro "mantra" usado pelos defensores do instrumento que mata é que bandido não compra arma em loja. Então, para esses criminosos, que diferença faz proibir ou não? A arma que bandido "cachorro grande" usa é aquela roubada do exército, contrabandeada, trazida do exterior. A da loja é aquela que é roubada do "cidadão de bem" e depois usada em briga de bar, acidente com criança, conflito de trânsito, rusga de jogo de futebol.

Mais um dado para compor este cenário: várias das pessoas que defendem tão veementemente o não sequer têm ou tiveram armas em casa. E sabem -- uma delas me disse -- que nem adiantaria, pois eles apregoam que a "posse responsável" manda que a arma fique bem guardada/escondida em um lugar e a munição em outro. Então vamos a uma das imagens tão batidas: um ladrão entra na sua casa à noite. Você acorda completamente consciente e com pensamento ágil, claro. Vai buscar a arma guardada. Em seguida vai buscar a munição em outro lugar. Aí carrega a arma e vai dar um tiro na fuça do ladrão. Que ficou sentado no sofá da sala esperando isso tudo.

Há ainda uma questão curiosa que é a tal da "teoria da conspiração". Volta e meia recebo mensagens dizendo que o referendo e o possível sim são conspirações da Rede Globo, da mídia em geral, dos políticos (inclusive devido à forma como a pergunta foi elaborada), dos artistas. Pergunta: por que será? Que interesses eles têm nisso? Não consegui sacar.

Bom, talvez eu é que seja ingênuo, utopista ou simplesmente limitado (eufemismo para burro), mas o que acredito é que deveríamos usar toda essa energia e mobilização para, de alguma forma, cobrar e garantir que a polícia seja instrumentalizada para combater os bandidos. Para encontrar uma maneira de dar credibilidade às instituições democráticas. Para trabalhar na direção da inclusão social. E, em vez de pensar no aqui e agora, olhar para o longo prazo no futuro dessa raça belicosa que escolhemos ser e que podemos escolher deixar de ser.

Ah, um detalhe importante: há uma parte do estatuto de que ninguém fala, que diz que "para comprar armas, é necessário declarar necessidade, comprovar idoneidade e não estar respondendo a inquérito policial ou investigação criminal, além de comprovar ocupação lícita e residência certa e capacidade técnica e aptidão psicológica; para obter o porte, é preciso demonstrar necessidade por profissão de risco ou de ameaça". Ou seja, a "população ordeira" tem seus direitos garantidos...

Como não sou o dono da verdade, acho legal visitar os dois sites oficiais (e outros que existam) para ter as próprias opiniões. O que defende o comércio é o da Frente Parlamentar pelo Direito da Defesa; e o que defende a proibição é o da Frente Parlamentar Referendo Sim. E veja que interessante: é exatamente a lei da maioria, a democracia, e não a lei do mais forte, ou do mais armado, que permite que o referendo aconteça.

Um dos cartazes que recebi por e-mail diz o seguinte, ao lado da imagem de um revólver: "Cidadão armado, apenas dois grupos sociais são contra. Criminosos e Políticos preferem vítimas desarmadas". Não sou criminoso. Não sou político. E sou contra.

PS: Quero acrescentar que fico feliz que haja pessoas do meu convívio pessoal e profissional (um deles ex-militar, inclusive) que comungam dessas opiniões. Um pouco menos de solidão :-)