Ao vento
Hoje acordei com um gosto amargo na boca e fiquei imaginando se o amargo também ficou bravo por ter acordado com minha boca sobre ele. Versações nonsense a 340 bpm. Divago enquanto procuro abrigo nas sombras do meu cérebro e a racionalidade espreita, armando uma tocaia da qual nunca consigo escapar.
Comunicação instantânea, corpos esteticamente perfeitos, vida orientada a resultados, robôs que se multiplicam e eu só queria encontrar o dia de hoje no calendário. Só queria encontrar esse dia pra saber se na minha agenda está anotado, como compromisso: "não pensar". E aí serei feliz e obediente como uma ovelha irlandesa.
Ratoeiras dispostas sobre a mesa. Não há isca preparada. Eu escolho de bom grado qual delas vai estalar e esmagar os meus pensamentos. Sem recompensa. Sem consequência. Sem ou com sequência? Sensequência? Aquiescência. Aqui é a essência. E o vazio se estende por intermináveis planícies brancas, onde a razão continua esperando, sabendo que, mesmo sem querer, vou atravessar as distâncias e cair em sua armadilha.
Voltar a pensar é como tomar fôlego depois de muitas horas debaixo d'água. É uma gana. É um alívio e é também o desespero, pois você lembra que uma vez que voltou a respirar, terá de respirar pra sempre. Pode até afundar de novo no macio, azul e confortável oceano do irracional, mas sabe que não aguentará muito tempo. Nessa hora invejo os boçais felizes e os autistas.
Porque eu questionei pela primeira vez? Porque aceitei a fagulha da inquietação? É ópio. É vício e de repente tudo que restou foi o desespero por outro teco. Há quem escolha cocaína. Eu escolhi o pensamento. Podia ter sido um casamento. Ou ter me internado num convento. A fissura pelo embelezamento. Mas minha escolha foi ser como areia atirada ao vento.
See Ya