28.10.04

"Enobrece o homem"?


*** ATENÇÃO: Assim como às vezes pinta post pra baixo, de vez em quando também rola texto Polyanna. Este é o caso. Se você não está a fim... bom... you know the drill ;-) ***


Freqüentemente leio certas coisas e fico traçando paralelos com a minha vida. (Grande novidade, todo mundo faz isso. Dããã!) Faz um tempinho, li uma coluna das divertidíssimas meninas do 02 Neurônio no Folhateen em que elas falavam sobre trampo em escritório e o confinamento que isso significa.

Aí fiquei pensando no meu trabalho. Sendo originalmente professor, passei vários anos na sala de aula. E, já há outros tantos, estou durante a maior parte do tempo dentro de um escritório, com mesa, telefone, computador e tudo o mais. Mas a diferença entre a minha percepção e o que elas descrevem é que eu não me sinto confinado (nem freqüento restaurante por quilo em grupinhos falando mal do chefe heheh). Muito pelo contrário: gosto de estar lá.

Essa é uma área da minha vida em que tenho bastante sorte. Faço o que gosto, onde gosto e com quem gosto -- e isso há um booom tempo. Trabalho com educação, com professores, coordenadores, etc, o que é minha opção. Meu escritório não fica em um daqueles prédios sofisticadíssimos da Berrini que parecem cofres, mas da minha janela vejo árvores em três tons de verde e obras de arte para todo lado (em plena Av. Nove de Julho). E, sobretudo, convivo com pessoas com quem compartilho não só um trabalho legal, mas as conquistas, as frustrações, as coisinhas pequenas do cotidiano, o mecânico, o cortineiro, os planos, as idéias, a história e as gargalhadas genuínas. Como diz uma delas: "o trabalho é o esperado, mas a amizade é bônus".

Nosso cotidiano juntos não é só a definição de um projeto. É a escolha do nome do bebê que vem por aí. Não é só a reunião. É o convite para a celebração das Bodas de Prata (!). Não é só uma viagem de negócios, é o almoço regado a risadas e filosofia de boteco entre uma parte e outra do dia. Tenho o prazer de conviver com pessoas que, hoje ou ontem, aqui em S. Paulo ou da Bahia ao Rio Grande do Sul, passando pelo Rio de Janeiro e Santa Catarina (viva a tecnologia!), me desafiam, me fazem exercitar a massa cinzenta, acolhem meu mau-humor, dão risada comigo e comungam de boa parte do meu jeito de estar no mundo.

Agora, calma lá: isso não quer dizer que não haja problemas, chateações, brigas, saco cheio. Tem trabalho demais? Tem. E, meu Deus, como! Tem grana de menos e gente de menos? Tem também. Tem gente que sacaneia? De vez em quando tem -- mas essas acabam indo embora, felizmente. Tem computador que pifa? Impressora que come papel? Tem tudo isso. Mas o saldo é bem positivo. Não só por causa do que mencionei lá em cima, mas também porque acreditamos no que fazemos, em como o fazemos e nos valores que sustentam isso.

Durante algum tempo fiquei pensando se isso não era o "jogo do contente" que eu usava para esconder que eu era bundão e não tinha peito para procurar outras paragens. Mas, depois de passar por vários desafios dentro do mesmo lugar, concluí que é por vontade, mesmo. Primeiro, porque conheço o valor e o potencial do meu trabalho. Depois, e sobretudo, porque há um limite para o quanto você consegue enganar a si mesmo sobre um lugar onde passa mais de um terço dos seus dias durante anos e anos.

Bom, depois dessa ode toda, o contraponto: sei que o meu caso não é um dos mais comuns. Muita gente trabalha sob níveis desumanos de estresse, não faz exatamente o que gosta e lida com situações além do suportável (vide meu companheiro de blog heheh). Mas, se eu puder dar uma dica -- tão óbvia quanto pouco realizada -- é procurar fazer algo que dá prazer. Não só no trabalho, mas também fora dele. Um trabalho voluntário, um blog para escrever, um esporte legal, um filho que encha os olhos e o coração, uma viagem acalentada, sei lá. Invente o seu ;-)

O que não dá é para se deixar consumir pelo trabalho como se ele fosse um daqueles espremedores de laranja que só deixam o bagaço depois. E isso é "facinho, facinho" de acontecer. Mesmo eu, que adoro o que faço, tenho outras atividades para não ficar oco sem ele. Se não, quando você vê, sua vida foi detonada pelo trabalho e não sobrou mais nada. Lembre-se que, cedo ou tarde, ele vai e você fica. Quer ficar como?


25.10.04

Alternativa E: todas as anteriores


Li no dia sete uma coluna do Contardo Calligaris (ele de novo) na Folha de S.Paulo cujo título é "A cura da homossexualidade". Basicamente, o texto fala sobre um projeto de lei que será votado na Assembléia Legislativa do estado do Rio de Janeiro e que autoriza o uso de dinheiro público para financiar quem se dispuser a "converter" homossexuais em heterossexuais.

Mais um ingrediente nessa receita: na semana que vem tem eleições para presidente nos Estados Unidos. Indiretas, a rigor, na autoproclamada "maior democracia do mundo" (mas isso é outra discussão). Lá, depois da guerra do Iraque, as principais discussões são a autorização para abortar e o chamado "casamento gay".

Aí fiquei aqui pensando sobre a questão das escolhas. E a liberdade que temos (ou achamos que temos) para fazê-las.

No caso dos EUA, tenho um casal de amigos que vai "votar" no Bush Jr. exclusivamente porque ele é pro-life (contra o aborto), em oposição ao Kerry, que é pro-choice (a favor da escolha sobre abortar ou não).

No Rio, dizem que o projeto fluminense não é preconceituoso porque é só para aqueles que voluntariamente quiserem "se curar" -- a não ser que sejam menores de idade, porque aí é decisão dos pais. Leiam a coluna que vocês vão saber os detalhes sórdidos.

Mas divago. Vamos voltar à discussão principal. Será que realmente escolhemos o que achamos que escolhemos? Será que diversas opções que nos enchem o peito de orgulho e nos fazem sentir autônomos e únicos não são simplesmente nossa maneira de obedecer ao que nos cerca desde sempre? Será que nossa escolha de sair da casa dos pais (ou ir ficando nela), de casar, de mudar de emprego, disso e daquilo não são só vontades pré-programadas a que nos curvamos sem nem saber?

Quando estamos cercados por qualquer contexto, aquilo que o forma nos parece natural, "normal", não é mesmo? E nossas opções partem dessa base, não é assim? Então, como fica a tão-falada individualidade que tentam nos vender em propaganda de carro? Onde ficam as vontades realmente nossas (como essas que o Fabricio coloca aí embaixo)? Tenho cá minhas dúvidas se sequer existem -- ou resolvem.

Bom, esse post não pretende chegar a lugar nenhum. Mas proponho uma reflexão: Que vontades suas são realmente suas? O que você realmente quer ou, no fundo, querem que você queira? Será que esse seu celular foi desejo seu? Será que aquele consórcio vale o preço que você paga? Será que a música que você gosta, o filme que você está a fim de ver, a "mina" que você quer "pegar", têm realmente a ver com você? Melhor: será que conseguimos saber onde termina a gente/indivíduo e onde começa a gente/coletivo? Sei lá...

Ah, e antes que me acusem de ficar em cima do muro sobre os assuntos lá em cima, tenho minhas opiniões, ou pelo menos acredito que sejam minhas :-). Quanto ao homossexualismo, tenho cá comigo que o que duas ou mais pessoas fazem na cama (ou "nas quatro linhas", como diz uma amiga), desde que consensual, é uma questão delas e pronto. Pessoalmente, no entanto, o lifestyle da parcela maior -- ou mais visível, pelo menos -- da comunidade gay, que se apóia na tríade superficialidade/promiscuidade/futilidade, me incomoda um pouco. Mas não me parece que dinheiro público seja para dar conta disso. E sou, a princípio, contra o aborto, apesar de várias dúvidas.


Agora, em um ou outro caso, adapto para aqui aquela fala já rota e gasta do Voltaire: "mesmo que não concorde com uma palavra sequer do que dizeis, defenderei até a morte o vosso direito de dizê-las". Caso contrário, não teremos escolha a não ser a de permanecer escravos incontestes do senso-comum para o resto de nossas vidinhas meRdíocres!

21.10.04

no fun at all...

sei lá...
quero sair...
arrumar briga...
beber até cair...
tomar água de chuva...
beijar um amigo na boca...
chutar uma porta de ferro...
sentar numa escada rolante...
jogar vinho na sarjeta suja...
comprar dúzias de camisinhas...
contar o tempo de um semáforo...
botar fogo em um lençol branco...
ficar com a mina do cara grandão...
desenhar a noite estampada nos meus olhos...
ficar esperando uma lâmpada de mercúrio piscar pra mim...
gritar com a cabeça dentro de um bueiro...
me cortar e ver o sangue pingar...
cantar Bowie e vender o mundo...
fuçar num saco de lixo cheio...
dar o desenho a um mendigo...
pular numa poça d'água...
quebrar uma garrafa...
correr de madrugada...
rir por quase nada...
dormir ao relento...
e se não resolver...
foda-se...

See Ya

14.10.04

O Louco, a Bruxa e o Príncipe: a parábola da humanidade

Certa vez eu voltava do trabalho, a pé, e ao passar em frente a uma rua sem saída vi um rapaz jovem, acompanhado de uma mulher, saindo da rua, com caras estranhas, olhando para trás. A mulher parecia chorar, ou falar com voz de choro, baixo. E de repente, do fundo da rua, de dentro de uma oficina mecânica, saiu um senhor já de meia idade, com roupas de mecânico. Mas só reparei que era uma pessoa por que tinha compleição física de humano, pois seu rosto de barba mal feita estava deformado e transtornado de forma que a própria mãe não o reconheceria.

"SEU COOOOORNO!!!", gritava ele para o rapaz, numa voz embargada de ódio e choro. Tentando se fazer ouvir em alto volume, tornavam-se quase incompreensíveis as palavras ditas por ele. Urros, na verdade.

O rapaz ameaçou voltar, tomando certa posição de luta, que alguns de vocês já devem ter visto em documentários do Discovery Channel.

"Nãaãooo!!", gritou a mulher. O rapaz retrocedeu. O velho avançou.

"VEM AQUI SEU FILHO DA PUTA... VÂMO SE ATRACAR AQUI NESSA RUA E VÂMO SE ACABAR AGORA MESMO!!!". Era uma súplica. O homem, desesperado seja lá com o que fosse, deixou todo seu sentimento explodir numa ira sem fim, se colocando a disposição da morte, ou de uma boa surra, para tentar solucionar o que o atormentava.

O rapaz e a mulher deixaram a rua, o homem ficou de joelhos, urrando em desespero e chorando.

O louco.

Hoje eu estava indo para o trabalho, na lotação, e uma mulher alta, com seus 40 e poucos anos, entrou. Se vestia com calça jeans e uma blusinha. Tamanco e cinto vermelhos, para combinar. Bateu boca com o cobrador. Nem sei porque. Passou pela catraca.

"Olha, nem vou começar a brigar agora, porque se não vou parar a lotação. Eu já parei muita lotação brigando."

E o cobrador, todo debochado. "Sei."

"Vai todo mundo parar na delegacia!!!! Tá duvidando?"

"É, vai sim."

A mulher não moveu uma linha de expressão. Com a voz baixa, apenas falou, retumbante. "Vocês vão perder essa lotação. Marta vai ganhar e vocês vão ficar sem a lotação. Vão capotar."

Nasceu e cresceu o silêncio na lotação, mas em seguida tudo voltou ao normal. Logo adiante a mulher desceu, silenciosa, como que conhecendo os meandros da maldição que havia rogado.

A bruxa.

"Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se avizinha, porém, revoltam-se."

Nicolau Maquiavel, "O Príncipe".

See Ya

11.10.04

Homens que aprenderam a voar

Milhões de conexões por segundo. Cada olhar, cada movimento, cada entrada e saída de ar, cada batimento cardíaco. Tudo sincronizado, funcionando de forma uníssona e perfeita. Bem, perfeita, não! Mas aceitável. Este é você. Esta é sua vida. Você precisa de toda essa massa cerebral pra sustentar uma vidinha medíocre e sem sentido.

Você se prepara para o pior? Tem um bom seguro de vida? Previdência privada? Talvez você faça muitos exercícios e consulte o dentista regularmente. Talvez pague um asilo para seus pais para que Deus veja como você é bom e te dê um fim digno e tranquilo. Talvez tenha feito duas faculdades, MBA, pós, mestrado, doutorado e todo o resto para ter uma chance melhor de ter um bom emprego e quem sabe também ser digno de um fim morno e tranquilo.

Mas de repente acontece e você simplesmente perde parte ou boa parte daquela massa cinza que você guarda na cabeça e nem sabe direito como utilizar, mas que no fundo te mantém vivo e ignorante. Num dia você é um ator rico e famoso andando a cavalo, no outro, um vegetal plantado num vaso de lençóis limpos. Num dia você é um cantor aclamado voando num ultraleve e no outro você é viúvo e não consegue andar ou lembrar se alguem limpou sua bunda depois que você foi ao banheiro.

Você vai ter de aprender a viver com o fracasso eterno, com a impossibilidade e com as limitações. E tudo aquilo que você cultivou (a não ser pelo dinheiro, não sejamos hipócritas!!) não pode fazer nada por você. Contudo, é na mesma massa cinzenta que se encontram as respostas certas para você. Se você não usou seu cérebro apenas para separar suas orelhas, se processou com afinco e dedicação as informações devoradas por seus neurônios, se questionou o que ouvia e aprendia, se forçou seu cérebro a criar ao invés de copiar e simplesmente ver o que os outros cérebros criavam, você certamente irá entender estas duas palavras e como elas podem salvar sua vida: plasticidade neuronal.

Seu cérebro pode reaprender como fazer praticamente tudo que você fazia antes. Você recuperará funções que estariam perdidas para sempre. Mas isso vai depender do alimento que você deu para sua mente. Portanto, deixe sua preguiça mental de lado. Existem pessoas por aí que fazem, com metade do cérebro, o que você não faria se tivesse dois inteirinhos. Nunca é o bastante e você nunca deve parar de procurar usos para seus pensamentos. Não se castre, não se deixe castrar. Entenda que você é tudo aquilo que se passa em sua cabeça e que se você não der ouvidos ao seu cérebro frequentemente, você vai morrer e apodrecer muito antes de seu coração parar. Se você tem o grande poder de suprimir pensamentos e sensações, saiba que você está involuindo. Não tenha filhos e, por favor, levante essa bunda da cadeira e tire esses olhos deste texto e vá arranjar comida para o seu pensamento.

See Ya

PS: este post é dedicado a Herbert Vianna e Christopher Reeve (que morreu ontem, dia 10/10): dois dos melhores cérebros já criados e bem alimentados do planeta.

6.10.04

Um ano


*** ATENÇÃO: Este é um post-desabafo longo, chato e "pra baixo". Se quiser ler algo instigante e divertido, favor dirigir-se ao guichê ao lado. Obrigado :-) ***


Atingido pelo veneno, e já começando a afundar, o sapo voltou-se para o escorpião em suas costas e perguntou: "Por quê? Por quê?" E o escorpião respondeu: "Por que sou um escorpião, e essa é a minha natureza."


Ontem, 5 de outubro de 2004, fez exatamente um ano que passei pela mais cruel experiência afetiva da minha vida nesses trinta e poucos anos. (Eu tenho esse dom/maldição que me acompanha: dificilmente me esqueço de uma data significativa.)

Há um ano descobri, por caminhos tortuosos, que alguém em quem eu depositava absoluta confiança me sacaneou da pior forma possível: a mentira. O engano. O engodo. A traição. A dor foi de tal intensidade e amargura que superou a da morte de uma pessoa que era muito íntima e amada, até então minha pior lembrança.

O mais grave é que era alguém cuja amizade e proximidade eu valorizava como pouca coisa nesse mundo. Alguém cuja lealdade eu tinha como inquestionável. Uma companhia com que eu contava em todas as horas e situações. E isso é o que mais machuca. Ao tomar pelo "valor de face" tudo o que me era dito, acabei sendo pego desarmado. Indefeso. Confiante. De portas e alma abertas. Nu. E, honestamente, eu não merecia. Talvez tenha sido a minha passagem definitiva ao mundo dos adultos ao perder a ingenuidade da confiança incondicional, sei lá, mas eu não merecia.

A questão é que, feliz ou infelizmente, tive a sorte de ter uma família isenta de filhos-da-puta. Com vários outros problemas, mas não esse. No lugar onde trabalho há anos também não tive experiências desse tipo. Muito pelo contrário: convivo com pessoas que são grandes amigas e companheiras. Portanto, eu não tinha aprendido como lidar com gente assim. Claro que houve várias situações de "tapete puxado", mas nunca -- nunca -- de alguém realmente íntimo e com livre trânsito pela minha vida. Até um ano atrás.

Mas não há de ser nada, não. A gente junta os cacos e parte para a próxima, dessa vez com mais cuidado. E há o poder libertador das palavras, que também contribui. Na época, ouvi, ao telefone, de uma pessoa bem próxima a nós: "criei um monstro". Só o fato de ter sido nomeado já me ajudou a colocar as coisas em perspectiva.

Mestre Jung nos fala sobre buscarmos o "tesouro da sombra"; ou seja, nada é tão ruim que não traga em si algo de bom. Neste caso, e em vários outros, sinto que o tesouro da sombra é o que se aprende. E o que aprendi foi a estar mais atento aos sinais de que o mau-caráter está instalado ali. Eles sempre existem, é só prestar atenção direito e não ficar se enganando.

Enfim, ontem fez um ano que tudo isso caiu no meu colo para eu lidar. Um ano, Deus meu, um ano. E ainda dói...


PS: E, falando em sacanagem, no final de semana passado roubaram uma placa de bronze do lugar onde trabalho, que existia desde a fundação em 1950. Ela ficava na fachada -- que teve várias alterações nesse tempo todo, mas a placa sempre esteve ali, como símbolo e testemunha dos 54 anos tentando fazer desse mundo um lugar melhor. Agora vem um qualquer e leva-a para derreter. O seguro provavelmente vai pagar o valor do bronze de que a peça era feita. Mas quem paga o simbolismo que foi com ela? Quem paga a nossa história? Aliás, dá para pôr preço em algo assim? Resumo da ópera: esse mundo tá cheio de "feladaputa"!

4.10.04

O Rio de Janeiro continua lindo (apesar de tudo)

Fui passar o final de semana no Rio de Janeiro. Ipanema estava uma delícia, o sol estava ótimo, a praia estava perfeita e a beleza daquela terra estava a de sempre.


Mas o que quero compartilhar é outra coisa. No início da noite de sábado fui ver um filme chamado A Dona da História, com a sempre expressiva Marieta Severo, além da Débora Falabella, Rodrigo Santoro, Antonio Fagundes e mais uma galera aí. O filme é bem legalzinho, diferentemente de Olga (ugh!) faz o que se propõe a fazer -- ser uma comédia romântica despretensiosa --, a trilha é legal, a produção é bem-feita e o roteiro "fala" com públicos diferentes. E curti caminhar pelas locações depois de sair do cinema :-)

E é especificamente sobre o roteiro e seu impacto que eu quero falar. A história é, basicamente, um balanço que a personagem da Marieta Severo, Carolina, faz aos 50 anos, 32 de casada, quatro filhos. Acontece que, durante essas reflexões, ela se encontra consigo mesma aos 18 anos (Débora Falabella). E aí elas (Carolina jovem e Carolina adulta) começam a conversar sobre como as coisas poderiam ter tomado outros rumos, e algumas possibilidades são mostradas.

Isso me deixou pensando. Não poucas vezes acontece comigo de devanear: "E se tal e tal (não) tivesse acontecido?". O fato é que eu, que já não tenho 18 anos há quase outros tantos, fiquei imaginando como teria sido minha vida até aqui se algumas coisas significativas tivessem sido diferentes. E quer saber? Foi gostoso. Foi legal. Apesar de o lugar-comum sempre dizer que "não é para a gente se arrepender do que fez, só do que não fez", me arrependi e me orgulhei, sim, de situações nas duas categorias. Enfim, foi uma viagem bem interessante para o mundo das hipóteses. Pena que viagens assim são, como diz alguém de quem gosto muito, só uma "ilusão efêmera". Mas que foi bom, foi!


1.10.04

Areias Malditas

Bateu tanto em Louise, que quando finalmente a largou ouviu o baque sujo e molhado do corpo da garota sobre a poça de sangue que havia se formado. Joseph parecia um açougueiro: o jaleco, que horas atrás fora branco, estava coberto de manchas e pedaços vermelho escuros. Havia respingos de todos os fluidos de Louise maculando o óculos, os cabelos e os sapatos de Joseph. Sobre a mesa metálica havia ferramentas, facas, serras e mais objetos familiares a Joseph e seu dia-a-dia como legista.

Olhou para o corpo pálido e, agora, espancado da garota e pulou por cima dele, se desvencilhando da visão, mas não dos cheiros e do clima tenso.

"Desgraçada! Quero ver você abrir a boca agora!" murmurou, como que com receio que alguém o ouvisse.

Alguém ouviu.

"Joseph, será que você nunca vai entender que o fato de eu já estar morta me isenta da dor e do sofrimento?"

Joseph não ousou olhar pra trás e encarar, mais uma vez, os olhos fundos, marcados e vazios do cadaver.

"Quantas surras você já me deu? Seis? Sete? Sabe que isso não vai me impedir de te dizer o que tenho a dizer."

O legista deixou-se cair, de joelhos. "Por que, Louise? Por que eu? Deixe-me em paz. Eu nem sei o que seu corpo está fazendo aqui. Você morreu no Cairo, do outro lado do Oceano Atlântico e..."

"Eu não morri no Cairo, Joseph. Eu morri no templo de N'Kai."

"Eu sei!!", gritou Joseph, e de repente teve medo de alguém no necrotério tê-lo ouvido. Foi ao fundo da sala e trancou a porta. Voltou, ainda sem encarar o corpo de Louise espalhado no chão. "Escuta aqui, sua vaca, me diz logo o que você quer. Eu não vou ficar de conversa com um cadáver. Eu não sou maluco."

Ouviu um risada baixa. Louise zombava dele. "Ah, meu querido! Eu sei tanto sobre a minha chegada a América quanto você. Mas o caso é que alguém invadiu o templo para me buscar. Me encaixotou, subornou quem foi necessário e me remeteu de volta a Chicago. Eu gostaria de ter vindo na primeira classe, mas não permitem clientes mortos por lá. Uma pena."

"Eu não acredito! Acharam seu corpo numa caixa, nas docas, e te mandaram pra cá. Fizeram de propósito, Louise. Queriam que eu te encontrasse. Olha, não tem cabimento eu coversar com gente morta. Vou te colocar de volta na gaveta. Não quero saber de nada disso.". Joseph caminhou na direção do corpo, ergue-o e colocou sobre uma das gavetas disponíveis. Não parou nem um segundo para pensar no que fazia. Apenas fazia.

"Joe, você precisa me ajudar. Por favor. Em nome de tudo que você considera sagrado. Você não sabe o que foi morrer em N'Kai. Eu nunca realmente morri nem nunca realmente voltei a vida. Meu corpo foi arrastado por todos os lados daquele templo. Fui revirada e violentada por aquelas criaturas nojentas. Fiquei perdida num limbo de mil Tsagas e tive de aguentar eles espalhados por dentro e por fora de todo meu corpo. Eu podia sentir tudo, Joseph. Eu enlouqueci e sofri demais. Enquanto virei um brinquedo sob aquela areia maldita, o Grande Deus devorou, pedaço por pedaço, minha alma. Eu ainda posso sentir sua língua áspera e monstruosa me agarrando e arrancondo pedaços de tudo que eu fui um dia."

"Cala essa boca!!!" Joseph esmurrou o rosto de Louise e o movimento resultante deixou à mostra o buraco feito pela bala do revolver de Hans, um ano antes, quando eles tentavam fugir do templo e Louise os traíra. A vaca mereceu ter morrido, ele pensou na época. Mas o sofrimento pelo qual ela passava não era justo pra ninguém. Contudo ele não podia mais dar ouvidos a essa loucura. E por outro lado sabia que seria assombrado para sempre pela bela e morta Louise caso não tentasse descobrir o que, ou quem, a trouxera de volta a Chicago. "Que se dane!". Bateu a gaveta.

Começou a limpar o chão, mas ouviu a voz surda de dentro da gaveta. "Joseph, seu maluco!! Você é um retardado doente que se meteu nessa de caçar criaturas porque nunca fez nada direito na sua vida. Seu desgraçado. Você é tão covarde que não consegue nem enfrentar seu destino de frente. Pára de achar que mortos não falam ou andam e que as criaturas que você caça são aberrações. Elas são a maioria e são muito mais normais que você, seu puto doente. Agora abre essa gaveta e ouça o que eu tenho a dizer."


Encostado ao armário, Joseph se mantinha calado. Já não limpava mais o chão e o suor escorria por sua testa, apesar do frio de janeiro. Lentamente ele esticou o braço e tocou a alça da gaveta.

"Anda logo, abre essa droga de gaveta!!!!!", Louise gritou mais uma vez.

O legista puxou de uma vez, e lá estava o corpo, ainda surrado, exatamente na mesma posição em que fora deixado por ele. "O que mais você sabe, Louise?"

"Eu não entendia nada no templo, os homens que invadiram e roubaram meu corpo falavam alguma língua árabe, mas percebi que eles citaram um nome. Kusmenkovsky. Ou algo do tipo, me pareceu um nome russo."

"Isso é tudo?"

"Sim."

"Então veja se agora cala um pouco essa sua boca podre e deixa um vivo e covarde amigo te ajudar." Fez menção de fechar a gaveta, e Louise falou mais uma vez.

"Não me deixe muito tempo aqui trancada. E se encontrar o Hans, diga que pretendo retribuir o tiro que ele me deu na cabeça."

Joseph sorriu e fechou a gaveta. "Nem morta você deixou de ser rancorosa". Acabou de limpar o chão e saiu da sala, sabendo que a sua frente começava outra jornada insana guiada por monstros sobrenaturais e humanos enlouquecidos por sonhos de poder, parecendo brinquedos nas mão, ou tentáculos, de deuses que a maioria das pessoas nem poderia desconfiar que existem.

See Ya